Entrevista extremamente interessante publicada na revista Veja, da
psiquiatra mexicana Nora Volkow, 54 anos, é uma das mais importantes
pesquisadoras sobre drogas do mundo.
A
diretora do Instituto Nacional sobre Abuso de Drogas afirma que nem mesmo a maconha nem muito menos a DMT,
presente no chá do Santo Daime, podem
ser consideradas inofensivas
"Há
quem veja a maconha como uma droga inofensiva. Trata-se de um erro.
Comprovadamente, ela tem efeitos bastante danosos"
A
psiquiatra mexicana Nora Volkow, 54 anos, é uma das mais importantes
pesquisadoras sobre drogas no mundo. Quando, porém, o assunto são os danos
neurobiológicos que essas substâncias causam, Volkow pode ser considerada a
número 1. Foi a psiquiatra quem primeiro usou a tomografia para comprovar as
consequências do uso de drogas no cérebro e foi também ela quem, nos anos 80,
mostrou que, ao contrário do que se pensava até então, a cocaína é, sim, capaz
de viciar. Desde 2003 na direção do Instituto Nacional sobre Abuso de Drogas,
nos Estados Unidos, Volkow esteve no Brasil na semana passada para uma palestra
na Universidade Federal de São Paulo. Dias antes de chegar, falou a VEJA, por
telefone, de seu escritório em Rockville, próximo a Washington.
1-Há
quinze dias, um cartunista brasileiro e seu filho foram mortos por um jovem com
sintomas de esquizofrenia e que usava constantemente maconha e
dimetiltriptamina (DMT), na forma de um chá conhecido como Santo Daime. Que
efeitos essas drogas têm sobre um cérebro esquizofrênico?
Portadores
de esquizofrenia têm propensão à paranoia, e tanto a maconha quanto a DMT
(presente no chá do Santo Daime) agravam esse sintoma, além de aumentar a
profundidade e a frequência das alucinações. Drogas que produzem psicoses por
si próprias, como metanfetamina, maconha e LSD, podem piorar a doença mental de
uma forma abrupta e veloz.
2-Que
efeitos essas drogas produzem em um cérebro saudável?
Em
alguém que não tenha esquizofrenia, os efeitos relacionados com a ansiedade e
com a paranoia serão, provavelmente, mais moderados. Não é incomum, porém, que
pessoas saudáveis, mas com suscetibilidade maior a tais substâncias, possam vir
a desenvolver psicoses.
Estudos
conduzidos pela senhora nos anos 80 provaram que a cocaína tinha, sim, a
capacidade de viciar o usuário e de causar danos permanentes ao cérebro. Até
então, ela era considerada uma droga relativamente "segura".
3-Existe
alguma droga que seja segura no que diz respeito à capacidade de viciar e de
causar danos à saúde?
Não
existe droga segura, a não ser a cafeína. Como ela é estimulante e produz
efeitos farmacológicos nos receptores de adenosina, é, sim, uma droga. Mas não
há evidências de que vicie nem de que seja tóxica - a não ser que você tenha
problemas cardiovasculares. Ainda não sabemos se é prejudicial a crianças e
adolescentes, mas para adultos não há nenhum problema.
4-E
a maconha?
Há
quem veja a maconha como uma droga inofensiva. Trata-se de um erro.
Comprovadamente, a maconha tem efeitos bastante danosos. Ela pode bloquear
receptores neurais muito importantes. Estudos feitos em animais mostraram que,
expostos ao componente ativo da maconha, o tetraidrocanabinol (THC), eles
deixam de produzir seus próprios canabinoides naturais (associados ao controle
do apetite, memória e humor). Isso causa desde aumento da ansiedade até perda
de memória e depressão. Claro que há pessoas que fumam maconha diariamente por
toda a vida sem que sofram consequências negativas, assim como há quem fume
cigarros até os 100 anos de idade e não desenvolva câncer de pulmão. Mas até
agora não temos como saber quem é tolerante à droga e quem não é. Então, a
maconha é, sim, perigosa.
5-A
senhora concorda que ela seja a porta de entrada para outras drogas?
Se
você olhar os dados, verá que a maior parte dos usuários de cocaína começou com
a maconha. Mas, ao olharmos os dados de quem fuma maconha, veremos que essas
pessoas geralmente começaram com cigarros ou álcool. Qual seria a verdadeira
droga de entrada, então? Uma das leituras sobre essa questão é que, durante a
adolescência, as pessoas bebem e fumam cigarros porque esses produtos estão
disponíveis e são legais e, quando crescem, elas se tornam propensas a usar
drogas mais pesadas. Uma leitura alternativa é que a exposição à nicotina e ao
álcool na juventude faz com que as pessoas fiquem mais vulneráveis aos efeitos
de outras drogas. Para mim, essa é a hipótese correta. A exposição precoce às
drogas muda a sensibilidade do sistema de recompensa do cérebro. Como esse
sistema se torna menos sensível, os dependentes químicos buscam uma compensação
nas drogas.
6-Por
que em geral as pessoas começam a usar drogas na adolescência?
O
cérebro do adolescente é muito menos conectado do que o de um adulto. Como
resultado, os adolescentes não conseguem controlar e regular a intensidade de
suas emoções e desejos da mesma forma que os mais velhos. Isso faz com que
vivam de maneira mais vigorosa, mas, ao mesmo tempo, assumam riscos maiores,
como experimentar drogas.
7-O
uso de drogas na adolescência é mais perigoso do que na vida adulta?
Certamente,
porque o cérebro de um adolescente é mais plástico e mais sensível aos
estímulos externos que vão moldá-lo. A forma que seu cérebro vai tomar na idade
adulta depende muito dos estímulos que você recebeu quando criança e
adolescente. O risco de desenvolver o vício também é maior para o adolescente.
O motivo é o mesmo: a plasticidade cerebral nessa fase, que faz com que o jovem
apreenda informações muito mais facilmente do que o adulto.
8-Por
que é tão difícil quebrar o ciclo de desejo, compulsão e perda de controle que
o vício traz? É difícil porque o cérebro, em consequência do uso de drogas, é
modificado de maneira física. A dependência química é uma doença cerebral que
muda a bioquímica, a função e a anatomia do cérebro. Ocorre da seguinte
maneira: todas as drogas aumentam a concentração de dopamina no cérebro. Quando
o sistema dopaminérgico é ativado vez após outra pelo consumo repetido dessas
substâncias, ele sofre modificações, de forma que passa a não funcionar mais
quando a pessoa não está sob efeito da droga. Com isso, o usuário procura usar
mais drogas - para tentar compensar esse déficit.
9-O
que faz alguém se viciar em uma droga?
Isso
pode variar de pessoa para pessoa e de acordo com o tipo de droga. Mas, de modo
geral, é preciso que a pessoa seja exposta à substância repetidamente. Mesmo
nessas condições, nem todos os usuários se viciam. Porém cerca de 10% deles
desenvolvem o vício depois de pouco tempo de uso. Nos casos em que isso ocorre,
o usuário tem uma vulnerabilidade que pode ser de ordem biológica ou social.
Isso significa que ele pode ter uma predisposição genética para o vício ou
estar sob algum tipo de stress que ajudou a disparar o gatilho da adição. Os
traumas mais potentes ocorrem na infância: abandono, repetidas negligências,
abusos físicos, sexuais, convivência com pais presos ou portadores de doenças
mentais. Mas é claro que nada disso resulta em vício se a pessoa não tiver
acesso às drogas.
10-É
possível curar o vício?
Nós
não podemos curá-lo atualmente, apenas tratá-lo. Quando você tem uma infecção
bacteriana, toma um antibiótico e está curado. Agora, se você tem asma ou
diabetes, tem de tomar algum tipo de medicamento ao longo de sua vida. É um
tratamento para sua condição, não uma cura. Hoje, existem apenas tratamentos
para o vício, que combinam medicamentos e terapias comportamentais. Estamos
desenvolvendo uma vacina contra o vício de cocaína e nicotina, mas são apenas
pesquisas ainda.
11-É
possível, depois de se reabilitar, voltar a usar drogas sem se viciar?
Há
casos já identificados. Por muito tempo se disse, principalmente sobre o
alcoolismo, que, se você é alcoólatra, nunca, mas nunca mesmo, poderá chegar
perto de novo da droga. Em pesquisas, há evidências de que alguns alcoólatras
conseguem voltar a beber um ou dois copos de vez em quando sem se viciar, mas
eles são a minoria. O problema é que não sabemos quem será capaz de se ater a
apenas alguns drinques e quem vai se viciar de novo, por isso recomendamos
clinicamente que todos fiquem afastados da droga.
12-Está
em curso no Brasil
uma campanha para descriminalizar a maconha. A senhora concorda com isso?
Não
concordo porque, ao descriminalizar a maconha, você estará contribuindo para
que mais gente a consuma. Há quem não fume por medo da repercussão negativa que
a atitude pode provocar - e descriminalizá-la significa dizer: "Se você
fumar, está tudo bem".
13-Um
grupo de pesquisadores brasileiros está discutindo a possibilidade de permitir
o uso medicinal da maconha. Quais são os benefícios já comprovados da droga?
As
pesquisas mostram que os canabinoides, inclusive o THC, têm algumas ações
terapêuticas úteis. Por exemplo, diminuem a resposta à náusea, o que é muito
útil para pacientes com câncer que estão enfrentando uma quimioterapia. Outra
vantagem comprovada é que eles aumentam o apetite e podem ajudar a combater a
anorexia que acomete pacientes com doenças como a aids, por exemplo. Além
disso, podem ter benefícios analgésicos e diminuir a pressão interna do olho, o
que pode evitar um glaucoma. O que nosso instituto apregoa é que você pode ter
o benefício dos canabinoides sem os efeitos colaterais que resultam do fumo da
maconha, como a perda de memória, por exemplo. Por isso, estamos encorajando o
desenvolvimento de medicamentos que maximizem as propriedades terapêuticas da
droga sem seus efeitos danosos. No mercado americano, já existem algumas
pílulas, como a Marinol, que permitem isso.
14-Em
suas pesquisas a senhora descobriu que o córtex orbitofrontal, a principal área
do cérebro afetada por quem tem transtorno obsessivo-compulsivo, também está
ligado ao vício. É essa a chave da compulsão pelas drogas?
Eu
concluí que a pessoa viciada em drogas desenvolve uma obsessão e uma compulsão
pela droga similares às daquela que tem transtorno obsessivo-compulsivo. O que
o vício e o TOC têm em comum é que ambas as doenças afetam as mesmas áreas do
cérebro, aquelas relacionadas aos hábitos e aos controles. Mas, embora o local
afetado seja o mesmo e a apresentação dos sintomas se dê de forma parecida, os
mecanismos que levam a essas anormalidades não são.
15-A
senhora também estudou a função da dopamina em quem come compulsivamente. Que
relações se podem fazer entre a obesidade e o vício em drogas?
Ambos
resultam em uma busca compulsiva por uma recompensa: no caso da obesidade é a
comida e no caso da adição é a droga. Nos dois, há a perda de controle. Quem é
patologicamente obeso come mesmo quando não quer. Podemos dizer que algumas
pessoas parecem ser viciadas em comida, embora até o momento isso não tenha
sido aceito nas comunidades clínica e científica.
16-A
secretária de Estado dos Estados Unidos, Hillary Clinton, disse recentemente
que o povo americano tem uma demanda insaciável por drogas. A senhora acredita
que essa demanda é mesmo mais intensa nos EUA do que em outros países?
O
prazer oriundo das drogas é uma comodidade que você compra, como um luxo. Então
há, sem dúvida, um elemento econômico nessa discussão. Também existem elementos
relacionados à estrutura social e às normas. Os americanos são mais tolerantes
em relação a comportamentos diferentes do que muitos outros povos. Isso resulta
também em maior aceitação do uso de drogas.
17-A
senhora nunca sentiu vontade de experimentar alguma droga?
Bebo
de vez em quando um copo de vinho e experimentei cigarros quando era
adolescente. Nunca usei cocaína, maconha nem outro tipo de droga ilícita. Amo
meu cérebro e nunca pensei em estragá-lo.
Fonte:Veja
- 29/03/2010
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