Karina, de um ano e oito meses, frequenta o local
diariamente há um ano. Era um dos casos mais agudos. "Quando chegou aqui,
ela mal se mexia no bebê conforto", conta a nutricionista Mariana
Ravagnolli, Ravagnolli.
Hoje, com apenas seis quilos, a menina ainda é pequenina
para sua idade - nessa mesma faixa etária, a maior parte das meninas pesa pelo
menos 10,5 quilos, de acordo com a tabela de referência da Organização Mundial
da Saúde. Mas agora Karina tem energia. Ela experimenta o brócolis e passeia pela
sala, oferecendo-o aos amigos.
"Ela evoluiu muito em desenvolvimento. Até aparece de
vez em quando com aqueles arranhões de quem cai enquanto brinca", conta
Ravagnolli.
A "aula" de brócolis é uma das estratégias do Cren
para educar o paladar dos cerca de 80 bebês, crianças e adolescentes atendidos
no local, que é conveniado à Prefeitura de São Paulo. Trata-se da oficina
semanal de texturas e sabores, em que os menorzinhos podem cheirar, tatear e
provar alimentos in natura que não costumavam estar no seu cardápio.
A ideia é justamente reduzir a resistência deles a comidas
que, embora nutritivas, podem causar estranheza ao paladar.
Pelos corredores do Cren passeiam desde crianças muito
franzinas, como Karina, até outras que estão claramente acima do peso, como
Beatriz, que aos quatro anos já sofre com bullying na escola por conta da
obesidade. Tanto Karina quanto Beatriz estão, segundo parâmetros médicos,
desnutridas.
DESNUTRIÇÃO
É o desafio do Brasil do século 21: a desnutrição é um mal
causado tanto pela falta de comida na mesa quanto pela má alimentação, em uma
época em que crianças estão desde cedo expostas a salgadinhos, produtos lácteos
artificiais e açucarados, bolachas recheadas e outras guloseimas
ultraprocessadas que são usadas como substitutas de alimentos - mas que não
suprem necessidades nutricionais.
"É o que chamamos de furacão da desnutrição: um
problema com muitas causas", explica Ravagnolli.
"Temos desde famílias desestruturadas, que não dão
conta de cuidar das crianças como elas precisam ou não têm dinheiro para
alimentos saudáveis, até famílias bem organizadas, mas sem informações, ou que
moram ao lado de um mercadinho onde se vendem várias 'besteiras', mas precisam
pegar um ônibus para chegar à feira para comprar verduras."
O resultado é que o Cren chega a atender casos em que as
crianças sofrem, ao mesmo tempo, de anemia (carência de nutrientes essenciais
como ferro e zinco) e de colesterol alto (causado, muitas vezes, pela ingestão
excessiva de alimentos gordurosos).
VULNERABILIDADE
Dados de 2016 do Ministério da Saúde indicam que 7% da
população brasileira está desnutrida e 20% sofre de obesidade.
É nessa idade, porém, que, se necessárias, as intervenções
são cruciais.
A desnutrição na infância causa, além do aumento da
mortalidade e da recorrência de doenças infecciosas, prejuízos que podem ter
impacto na vida toda, como atrasos no desenvolvimento psicomotor, mau
desempenho escolar e menor produtividade ao chegar à idade adulta.
A obesidade também tem efeitos duradouros: crianças acima do
peso têm mais risco de desenvolver diabetes, hipertensão e doenças
cardiovasculares, entre outros males.
No ritmo atual, calcula-se que o Brasil terá 11,3 milhões de
crianças obesas até 2025 - é quase o tamanho da população da cidade de São
Paulo.
"Pela primeira vez na história, as crianças têm uma
expectativa de vida menor que a de seus pais por conta de uma alimentação
inadequada", afirma Ravagnolli, referindo-se a estudos internacionais que
preveem que a obesidade infantil possa criar uma geração de jovens adultos
doentes.
EDUCAÇÃO DO PALADAR
Uma das formas de prevenir isso é, segundo especialistas,
educar o paladar das crianças desde cedo.
"A alfabetização do paladar é uma das coisas mais
importantes a se ensinar às crianças em seus primeiros três anos", diz à
BBC Brasil Maria Paula de Albuquerque, gerente médica do Cren.
"A introdução alimentar, quando os bebês completam seis
meses, é uma janela de oportunidades e dificuldades."
CARETAS E CUSPES: COMO LIDAR?
É nessa fase que muitos pais se descabelam tentando oferecer
alimentos saudáveis em meio a caretas e cuspes - reações, aliás, que são
normais, uma vez que os bebês estão se adaptando aos novos sabores e texturas.
"É um período difícil mesmo, em que nós, pais, sentimos
angústia quando as crianças não comem", admite Ravagnolli. "Mas é
importante não forçar a comida, justamente para não fazer com que o momento da
refeição seja algo ruim."
O principal, nessa fase, é ofertar o máximo possível de
alimentos saudáveis, de diferentes grupos - carboidrato, proteína animal,
frutas, legumes, verduras e feijões - e também diferentes texturas.
Recomenda-se não transformar tudo em uma sopa de
liquidificador, justamente para não perder essa diversidade de sabores.
Acima de tudo, é preciso armar-se de paciência: não é porque
a criança pequena recusou ou cuspiu uma vez que ela não vai gostar daquele
alimento em particular.
"Para a criança aceitar um alimento, ela pode precisar
prová-lo até 15 vezes", explica Albuquerque. "É bom repetir esse
alimento em formas diversificadas - por exemplo, o espinafre cru, depois
refogado, depois em creme ou em uma torta."
Um erro comum é, diante da recusa da criança ao alimento
saudável, os pais substituírem por produtos processados de mais fácil aceitação
- ou "engrossarem" o leite dos pequenos com açúcar ou farinhas
lácteas.
"É aquele alívio de 'pelo menos a criança comeu algo',
mas é melhor que ela não coma nada do que vicie seu paladar ao sal e ao açúcar
dos alimentos processados", diz Ravagnolli.
"E precisamos deixar de lado aquele hábito de que 'a
criança precisa limpar o prato ou não vai ter sobremesa'. Isso só reforça que a
comida saudável é ruim e a sobremesa é legal. Não podemos querer que todas as
crianças comam em igual quantidade - elas precisam aprender (as sensações) da
fome e da saciedade."
'
NEOFOBIA ALIMENTAR'
As crianças e adolescentes atendidos nas duas unidades do
Cren (nos bairros paulistanos da Vila Jacuí e da Vila Mariana) não passaram, em
geral, por esse processo de alfabetização do paladar e muitas vezes sofrem do
que a médica Maria Paula de Albuquerque chama de "neofobia
alimentar": uma dificuldade com novos alimentos, uma vez que foram pouco
expostas a eles.
"São crianças com uma dieta monótona e pobre",
explica ela. "Por isso, fazemos oficinas lúdicas, para aumentar esse
repertório, fazer uma aproximação afetiva com o alimento."
Para as crianças mais velhas, o processo inclui, além do
manuseio dos alimentos, a preparação.
As crianças chegam ao Cren com quadro de desnutrição
identificado em consultas nas Unidades Básicas de Saúde ou pelo próprio centro
em visitas a comunidades carentes. A média de espera para atendimento é de um
mês e meio na unidade da Vila Mariana e de dois meses e meio na Vila Jacuí.
O diagnóstico principal se dá não pelo peso, mas sim pela
baixa estatura - detalhe que pode fazer a doença passar despercebida, uma vez
que os pais às vezes acham que a criança é apenas baixinha, e não desnutrida.
"É uma doença invisível, com um diagnóstico muitas
vezes tardio", explica Albuquerque. "Temos famílias em que a
desnutrição está indo para a terceira geração. E não é aquela desnutrição
africana (de crianças esquálidas), então não é tão impactante aos olhos. Mas
tem consequências gravíssimas para a vida da criança. Compromete todo o seu
desenvolvimento."
Mas, segundo Albuquerque, mesmo em famílias em situação de
pobreza e vulnerabilidade é possível promover mudanças de longo prazo na
alimentação.
"Fizemos um acompanhamento (de alguns pacientes) depois
de sete anos e muitos continuaram com os bons hábitos alimentares após a alta,
mesmo sem terem saído da favela", explica ela.
"O crucial é mudar a relação com a comida. Isso passa
pelo que a gente come, e como a gente come - a quantidade de comida, a
qualidade e o hábito de comer em família, em um ambiente tranquilo."
Fonte: BBC Brasil- quinta-feira,14 de dezembro 2017
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