Um milhão e quinhentas mil
pessoas infectadas pelo mundo —um terço delas na última semana. Oitenta e sete
mil mortos em uma velocidade desconcertante. O fim dos deslocamentos. Milhões
de pessoas obrigadas a readequar suas rotinas ao limite de suas casas. Há 100
dias, o mundo parou.
Em 31 de dezembro de 2019 um
comunicado do governo chinês alertava a Organização Mundial da Saúde para a
ocorrência de casos de uma pneumonia "de origem desconhecida"
registrada no sul do país. Ainda sem nome, o novo coronavírus alcançaria 180
países ou territórios. "É incrível refletir sobre quão radicalmente o
mundo mudou em tão curto período de tempo", indica o diretor-geral da OMS,
Tedros Ghebreyesus.
Para uma das principais
historiadoras do país, no futuro, professores precisarão investir algumas aulas
para explicar o que vivemos hoje, e o momento que vivemos pode ser comparado à
quebra da Bolsa de Nova York, em 1929. "A quebra da Bolsa também parecia
inimaginável", afirma Lilia Schwarcz, professora da Universidade de São
Paulo e de Princeton, nos EUA. "A aula vai se chamar: O dia em que a Terra
parou."
Lilia sugere ainda que a crise causada pela
disseminação da covid-19 marca o fim do século 20, período pautado pela
tecnologia. "Nós tivemos um grande desenvolvimento tecnológico, mas agora
a pandemia mostra esses limites", diz.
A seguir, trechos da
entrevista em que a historiadora compara o coronavírus à gripe espanhola, de
1918, diz que o negacionismo em relação a doenças sempre existiu e afirma que
grandes crises sanitárias construíram heróis nacionais, como Oswaldo Cruz e
Carlos Chagas, e reforçaram a fé na ciência.
COMPLETAM-SE 100 DIAS DESDE
QUE O PRIMEIRO CASO DE CORONAVÍRUS, NA CHINA, FOI NOTIFICADO À ORGANIZAÇÃO
MUNDIAL DE SAÚDE. PODEMOS CONSIDERAR QUE ESSES 100 DIAS MUDARAM O MUNDO?
É impressionante como um uma
coisinha tão pequena, minúscula, invisível, tenha capacidade de paralisar o
planeta. É uma experiência impressionante de assistir. Eu estava dando aula em
Princeton [universidade nos EUA], e foi muito impressionante ver como as instituições
foram fechando. É uma coisa que só se conhecia do passado, ou de distopias, era
mais uma fantasia.
Nunca se sai de um estado de anomalia da mesma
maneira. Crises desse tipo fecham e abrem portas. Estamos privados da nossa
rotina, sem poder ver pessoas que a gente gosta, de quem sentimos imensa falta,
não podemos cumprir compromissos que tinha previamente planejado.
Mas também abre portas: estamos refletindo um pouco se
essa rotina acelerada é de fato necessária, se todas as viagens de avião são
necessárias, se todo mundo precisa sair de casa e voltar no mesmo horário. Se
não podemos ser mais flexíveis, menos congestionados, com menos poluição.
Então, talvez abra [a
oportunidade] para refletir sobre alguns valores como a solidariedade. Todo mundo
que diz que sabe o que vai acontecer está equivocado, a humanidade é muito
teimosa. Mas penso que estamos vivendo uma situação muito singular, de outra
temporalidade, num tempo diferente. Isso pode romper com algumas barreiras:
estamos vivendo num país de muito negacionismo. No Brasil vivemos situação
paradoxal, o presidente nega a pandemia.
MAS O MUNDO, NESTE MOMENTO, É
OUTRO?
Neste exato momento em que
conversamos, o mundo está mudado. Nós que éramos tão certeiros nas nossas
agendas, draconianas, de repente me convidam para um evento em setembro, eu
digo: "Olha, não sei se vou poder ir, se vai dar para confirmar".
Essa humanização das nossas agendas, dos nossos tempos, eu penso que já mudou
sim.
Ficar em casa é reinventar sua rotina, se descobrir
como uma pessoa estrangeira [à nova rotina]. Eu me conheço como uma pessoa que
acorda de manhã, vai correr, vai para o trabalho, vai pro outro, chega em casa
exausta. Agora, sou eu tendo que me inventar numa temporalidade diferente, que
parece férias mas não é. Estar dentro de casa não é ferias, essa ideia de estar
no seu lugar, no seu recinto, você é que tem que cumprir com seu horário, isso
significa um movimento interior de redescoberta.
Insisto que nem todos passam
por isso. Nem todos estão passando por isso da mesma maneira, depende de raça,
classe, há diferenças, varia muito.
E EM RELAÇÃO AOS PAPÉIS
SOCIAIS DOS HOMENS E DAS MULHERES?
Nós, mulheres, já temos um
conhecimento distinto dos homens na noção do cuidado, na casa, acho que a
mudança vai ser maior para os homens, que não estão acostumados com o dia a dia
da casa, com fazer comida, arrumar, essa ideia de cuidado foi eminentemente uma
função feminina.
E estou muito interessada em
ver como os homens vão lidar com essa ideia de ficar em casa e ter que cuidar
também, é uma experiência muito única que vivemos. Acho que mulheres vão
continuar fazendo isso. Não é da natureza feminina, somos socializadas com essa
ideia de cuidados.
HÁ DISCUSSÕES QUE DIZEM QUE O
SÉCULO 20 CARECIA DE UM "MARCO" PARA SEU FIM E QUE AS PRIMEIRAS
DÉCADAS DO SÉCULO 21 AINDA ESTAVAM LIDANDO COM A HERANÇA DO SÉCULO PASSADO. A
SENHORA CONCORDA? ESSA PANDEMIA PODE FUNCIONAR COMO ESSE DIVISOR?
Sim. [O historiador britânico
Eric] Hobsbawn disse que o longo século 19 só terminou depois das Primeira
Guerra Mundial [1914-1918]. Nós usamos o marcador de tempo: virou o século,
tudo mudou.
Mas não funciona assim, a
experiência humana é que constrói o tempo. Ele tem razão, o longo século 19
terminou com a Primeira Guerra, com mortes, com a experiência do luto, mas
também o que significou sobre a capacidade destrutiva.
Acho que essa nossa pandemia
marca o final do século 20, que foi o século da tecnologia. Nós tivemos um
grande desenvolvimento tecnológico, mas agora a pandemia mostra esses limites.
Mostra que não dá conta de
conter uma pandemia como essa, nem de manter a sua rotina numa situação como
essa. A grande palavra do final do século 19 era progresso. Euclides da Cunha
dizia: "Estamos condenados ao progresso". Era quase natural,
culminava naquela sociedade que gostava de se chamar de civilização.
O que a Primeira Guerra
mostrou? Que [o mundo] não era tão civilizado quando se imaginava. Pessoas se
guerreavam frente a frente. E isso mostrou naquele momento o limite da noção de
civilização e de evolução, que era talvez o grande mito do final do século 19 e
começo do 20. E nós estamos movendo
limites. Investimos tanto na tecnologia, mas não em sistemas de saúde e de
prevenção que pudessem conter esse grande inimigo invisível.
A senhora já assinalou que a
gripe espanhola matou muito mais do que as duas Grandes Guerras juntas e que,
assim como vivemos hoje no Brasil, houve muito negacionismo e lentidão na
tomada de decisões. Não aprendemos essa lição? Por que é difícil não repetir os
erros?
A doença, seja ela qual for,
produz uma sensação de medo e insegurança. Diante desse tipo de crise,
sanitária, a nossa primeira reação é dizer: "Não, aqui não, aqui não vai
entrar". Antes de virar pandemia, as mortes são distantes, esse discurso
do "aqui não", é muito claro, é natural, com todas as aspas que se
pode colocar, porque o estado que queremos é de saúde. Mas nós também somos uma
sociedade que esquece o nosso próprio corpo, ele serve para botar uma roupa,
pentear o cabelo, é como se ele não existisse.
É demorado assumir, o
negacionismo existiu sempre. No começo do século, em 1903, a expectativa de
vida era de 33 anos. O Brasil era chamado de grande hospital e tinha todo tipo
de doença: lepra, sífilis, tuberculose, peste bubônica, febre amarela. Quando
entra [o presidente] Rodrigues Alves e indica um médico sanitarista para
combater a febre amarela, a peste bubônica e a varíola, eles começam matando ratos
e mosquitos e depois passam a vacinar contra a varíola.
Mas na época a população não
entendeu, não foi informada e reagiu. O mesmo presidente que indicou Osvaldo
Cruz é o que vai estar no poder no contexto da gripe espanhola. Osvaldo Cruz já
tinha morrido, então indica o herdeiro dele, Carlos Chagas. [Com a gripe
espanhola]
As autoridades brasileiras já sabiam o que estava
acontecendo, mesmo assim não tomaram atitude. A gripe entrou a bordo de navios
que atracaram no Brasil e aí explodiu. Mas a atitude sempre foi essa:
"Aqui não, é um país de clima quente, não é de pessoas idosas".
Como pode falar em ter menos risco no Brasil porque a
população é mais jovem, se é muito mais desigual que países europeus que já
estão sofrendo? O negacionismo cria o bode expiatório, é recorrente.
MAS POR QUE NÃO APRENDEMOS
COM OS ERROS DO PASSADO?
Porque o negacionismo nega a
história também. É dizer: "Em 1918 não tínhamos as condições que temos
agora, não tínhamos a tecnologia". Então também se pode usar a história de
maneira negacionista, negando o passado e dizendo que isso aconteceu naquela
época mas não vai acontecer agora.
Quando se fala em guerra, o
que acontece? Por que todos os países têm seu exército e tem reserva? Porque,
na hipótese de ter uma guerra, temos que ter um exército, tem toda uma
população de reserva na hipótese de ter guerra.
Se o estado brasileiro
levasse a sério a metáfora bélica, o que já deveria ter sido feito? Uma
estrutura para atender guerras de saúde, e isso não é só no Brasil, mas os estados
não fazem, não existe um sistema para prevenir as pandemias.
A doença só existe quando as
pessoas concordam que ela existe, é preciso ensinar para população. Se não tem
esse comando, as pessoas não constroem a doença e continuam a negá-la
As reações contra a gripe espanhola foram muito
semelhantes às de agora: poucas pessoas andavam nas ruas, quem andava estava de
máscara, igrejas fechadas, teatros lavados com detergente. A humanidade ainda
não inventou outra maneira de lidar com a pandemia a não ser esperar pelo
remédio ou pela vacina. Fonte: UOL
Noticias- 5.abr.20
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