Há 80 anos, soviéticos derrotavam os nazistas na batalha pela capital alemã. Episódios de violência e estupro contra civis marcaram a vitória final, que abriu caminho para o fim da Segunda Guerra Mundial na Europa.
Em meio aos escombros de uma
metrópole devastada pela guerra, a população de Berlim tinha uma ideia de onde
vinha o som de artilharia pesada que ecoava nas primeiras horas daquele 2 de
maio de 1945, há exatos 80 anos.
Não havia confirmação
oficial, mas uma rede informal de relatos e boatos indicava que a capital alemã
estava cercada pelo Exército Vermelho.
"Ninguém sabia
precisamente qual era a situação, mas a maioria dos berlinenses acreditava que
os dias da cidade estavam contados”, conta o jornalista Cornelius Ryan no livro
A Última Batalha (1966).
Naquela manhã, a bandeira da
União Soviética que tremulava no alto do Reichstag, a sede do Parlamento
alemão, acabaria com qualquer dúvida sobre o que estava acontecendo. Era o fim
Batalha de Berlim, episódio central na cronologia da última fase da Segunda
Guerra Mundia na Europa.
O conflito na Alemanha ainda
se estenderia por mais uma semana, mas a rendição da capital marcou o colapso
definitivo das linhas de defesa alemãs. Para os soviéticos, que haviam sofrido
o maior número de baixas entre todos os países na guerra, era uma conquista
triunfal.
O regime nazista já agonizava
nas ruínas do Terceiro Reich, decapitado após Hitler reagir aos sinais de
derrota iminente com um tiro na própria cabeça em 30 de abril. O sucessor dele
no posto de chanceler, Joseph Goebbels, também se suicidou no dia seguinte.
Sem uma liderança clara,
coube ao então comandante da Defesa Aérea de Berlim, Helmuth Weidling, decidir
pelo fim das hostilidades na região. Por diversos alto-falantes, a ordem se
espalhava: "Cada hora de conflito aumenta os enormes sofrimentos dos
cidadãos de Berlim e de nossos feridos (...) determino o imediato encerramento
dos combates".
UMA CIDADE REDUZIDA
O cenário era de terra
arrasada: do pico de 4,3 milhões de habitantes no final da década de 30, a
população se reduziu para 2,8 milhões em 1945, segundo registros históricos.
Mais de 600 mil residências foram destruídas, após anos de bombardeios aéreos
dos aliados.
Os moradores restantes
enfrentavam escassez de comida, remédio e itens básicos, além da interrupção
frequente no fornecimento de água e eletricidade. Pela rádio, transmissões
clandestinas da BBC revelavam os avanços no front ocidental, conforme descreve
o historiador militar Antony Beevor no livro Berlim 1945: A Queda (2002).
Os britânicos conheciam
poucos detalhes da investida russa. "Mas o seu anúncio de que o campo de
concentração de Sachsenhausen-Oranienburg tinha sido libertado a norte de
Berlim deu uma boa ideia do progresso do Exército Vermelho e da sua intenção de
cercar", ressalta o historiador na obra.
Encurralada dos dois lados, a
Alemanha entrou em abril de 1945 com poucas esperanças de uma reversão
significativa da campanha militar. Uma frase atribuída ao ministro das Relações
Exteriores alemão, Joachim von Ribbentrop, dá a dimensão do quadro: "A
Alemanha tinha perdido a guerra, mas ainda tinha o poder de decidir para quem
tinha perdido".
Sob a liderança dos
americanos, os aliados chegaram ao Rio Elba, a cerca de 100 quilômetros do
centro de centro de Berlim, de onde planejavam marchar para a capital do Reich.
Com a morte do então
presidente dos EUA, Franklin D. Roosevelt, em 12 de abril, e incertezas sobre
as linhas de suprimento, o supremo comandante das Forças Expedicionárias
Aliadas, Dwight D. Eisenhower, mudou de ideia: estavam cancelados os planos de
entrar em Berlim.
O recuo deixou rachaduras na
cúpula da aliança ocidental. O primeiro-ministro britânico, Winston Churchill,
defendia que os militares aliados deveriam "apertar a mão dos russos o
mais a leste possível", em uma prévia das dinâmicas geopolíticas que
viriam a emergir à superfície na Guerra Fria.
A CORRIDA SOVIÉTICA POR
BERLIM
A decisão de Eisenhower, de
fato, abriu caminho para a ofensiva russa em direção ao centro nervoso da Alemanha
nazista. Os soviéticos estavam, na verdade, em um processo de conclusão de uma
espécie de contra-ataque, após a vitória na sangrenta Batalha de Stalingrado
acabar com o avanço alemão na Rússia em 1943, explica o historiador Vítor
Soares, apresentador do podcast História em Meia Hora. "É esse
contra-ataque que culmina na derrota da Alemanha nazista”, diz.
Nas últimas semanas de abril
de 1945, o ditador da União Soviética, Joseph Stalin, entregou a missão de
invadir Berlim aos marechais Ivan Konev, chefe do primeiro front ucraniano, e
Georgy Zhukov, líder do primeiro front belarusso. O arranjo criou uma
verdadeira corrida entre os dois pelo prestígio de ser o primeiro a entrar na
capital alemã.
Após a ordem de Stalin, a
Batalha de Berlim começou oficialmente em 16 de abril. No último aniversário de
Hitler, em 20 abril, os soviéticos iniciaram uma longa e pesada campanha de
bombardeio da metrópole. Foi o suficiente para romper todas as linhas de defesa
nazistas. A Operação Clausewitz, desenhada pelos alemães para afastar os
aliados, fracassou.
Os soviéticos entravam por
todas as partes "como um enxame”, descreve Cornelius Ryan em A Última
Batalha. Enquanto abril se aproximava do final, distritos caíam para o controle
soviético como dominó. Homens da Juventude Hitlerista e da Guarda Nacional
tentavam resistir, mas já não tinham uma liderança clara. Muitos simplesmente
abandonavam as armas e fugiam.
ESTUPROS EM SÉRIE
Nos dias e horas finais da
batalha, um clima de medo e incerteza se alastrou pelas ruas de Berlim.
Soldados do Exército Vermelho cometeram atos de estupro em série de mulheres
alemãs, amplamente descritos em relatos da época e na historiografia
contemporânea.
O soldado ucraniano Vladimir
Gelfand escreveu sobre alguns casos nos diários que redigiu durante a guerra.
Nas passagens de 25 de abril, bem em meio à batalha, o oficial relatou um
encontro com um grupo de mulheres enquanto circulava de bicicleta em Berlim.
As mulheres relataram
episódios de violência sexual que deixaram o jovem militar horrorizado.
"'Eles estupraram minha filha na minha frente', a pobre mãe contou. ‘Eles
ainda podem vir e estuprar minha filha outra vez‘", cita um trecho diário,
descoberto e divulgado pela família dele após a morte de Gelfand.
Registros de agressões
sexuais de oficiais do Exército Vermelho já eram conhecidos há algum tempo, com
casos denunciados em outros países como a Polônia. Mas, ao se aproximar de
Berlim, o comportamento ganhou um caráter de vingança.
"Freiras, meninas,
idosas, grávidas e mães que acabaram de dar à luz foram todas estupradas sem
piedade", conta Beevor em Berlim 1945: A Queda.
Nos anos 50, um livro de
autoria anônima chamado Uma Mulher em Berlim provocou comoção na Alemanha ao
relatar o cotidiano de estupros sofrido por uma jornalista berlinense durante a
queda da cidade em 1945. No livro, a autora narra sua decisão de procurar um
relacionamento sexual com algum oficial soviético graduado e assim evitar sofrer
violência aleatória. Nas suas palavras, "encontrar um único lobo para
afastar a alcateia" e tentar sobreviver. O nome da autora do livro, a
jornalista Marta Hillers, só foi revelado nos anos 2000, após sua morte.
Os estupros em massa
aconteciam paralelamente ao avanço dos soviéticos em direção ao centro da
capital. Enquanto Hitler se suicidava no final de abril, batalhas sangrentas
eram travadas já dentro do perímetro urbano.
Os intensos bombardeios
prendiam as pessoas em abrigos lotados e matavam indiscriminadamente muitos dos
que se arriscavam a sair. Os feridos mal conseguiam chegar aos postos de
socorro. Nem o zoológico escapou: dos cerca de 4 mil animais que lá viviam,
apenas 91 sobreviveram. Ao mesmo tempo, tropas formadas por nazistas fanáticos
continuavam a caçar e executar alemães que tentavam desertar ou se esconder em
meio à batalha há muito perdida.
No começo de maio, os frágeis
focos de defesa sucumbiram. Para os nazistas sobreviventes, a única saída era
aceitar as condições do cessar-fogo. "A Batalha por Belim estava
oficialmente encerrada. As pessoas que se aventuraram a ir até a Praça da
República naquela tarde viram a bandeira vermelha tremular sobre o Reichstag”,
narra Cornelius Ryan.
Não há um consenso sobre o
número de baixas, mas as estimativas mais aceitas sugerem que mais de 150 mil pessoas
foram mortas naqueles últimos dias de combate pela capital alemã, de acordo com
Ryan.
UMA CIDADE DIVIDIDA
Quase três meses antes, a
Conferência de Ialta já havia decidido pela partilha da Alemanha e de Berlim em
quatro zonas de ocupações divididas entre as potências aliadas: Estados Unidos,
Reino Unido, França e União Soviética. Menos de duas décadas depois, um muro
seria erguido para dividir a cidade em duas e se tornaria o símbolo físico
máximo da Guerra Fria até a queda em 1989.
Mesmo assim, o fato de a
União Soviética ter sido a primeira a fincar a bandeira no núcleo central do
nazismo teve um papel fundamental na construção de uma identidade nacional,
explica o historiador Vítor Soares. "Os soviéticos tinham muito orgulho de
terem invadido e acabado com o nazismo", diz.
Após o fim da Segunda Guerra Mundial, três grandes memoriais soviéticos foram construídos em Berlim para marcar a vitória da URSS em Berlim e celebrar os 80 soldados soviéticos na batalha: um perto do Reichstag, no parque Tiergarten; outro no parque Schönholzer Heide; e, o maior deles, no parque Treptower. Fonte:DW - 01/05/2025








