Em 60 dias, uma pandemia
conseguiu deixar um rastro de 35 mil mortes no Brasil. Caixões eram empilhados
nos cemitérios por falta de coveiros. Escolas estavam sem aulas. O comércio
estava fechado. As ruas, vazias. Os espaços não foram esvaziados por orientação
das autoridades sanitárias, como tem acontecido durante a pandemia do novo
coronavírus. Não havia pessoas nesses lugares porque elas estavam doentes ou
mortas. Apenas no Recife, na época com 238 mil habitantes, 1.250 óbitos foram
registrados, ou seja, 0,5% da população morreu em menos de dois meses. O ano
era 1918, e o mundo enfrentava a gripe espanhola, até hoje considerada por
infectologistas “o maior holocausto médico da história”. O episódio deixou
marcas pelo horror, mas também ficaram lições que podem ser aprendidas mais de
um século depois.
Historiadores apontam que a
epidemia da gripe espanhola – que, apesar do nome, não surgiu na Espanha, mas
em um acampamento militar no Kansas, Estados Unidos – chegou ao Brasil pelo
Porto de Recife, a bordo do navio português Demerara, em setembro de 1918, “ao
que tudo indica vinda de Dakar, trazida por marinheiros brasileiros que
prestaram serviço militar na região”, de acordo com os virologistas Hermann
Schatzmayr e Maulori Cabral, no livro A virologia no estado do Rio de Janeiro.
À medida que os casos aumentavam em número e gravidade, o pânico começou a
tomar conta das cidades, que se tornaram cidades-fantasma, com os serviços
parando. “Restaram os serviços públicos da área da saúde, totalmente caóticos e
sem condições de prestar auxílio aos que os procuravam, pois sequer a etiologia
real da epidemia era conhecida”, relatam Schatzmayr e Cabral.
O pesquisador José Cássio de Moraes,
integrante da Comissão de Epidemiologia da Associação Brasileira de Saúde
Coletiva (Abrasco) e professor da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa
de São Paulo, lembra que a gripe espanhola surgiu no contexto da Primeira
Guerra Mundial. “Em março de 1918, há o registro no acampamento militar no
Kansas. Em maio, chega ao leste da África. Em agosto, na França. Em setembro,
na América do Sul. O espalhamento foi mais lento no mundo (em comparação com a
velocidade da Covid-19) porque os meios de transporte não eram os de hoje”,
compara.
A historiadora da Casa de
Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) e professora de pós-graduação em história das
ciências e da saúde, Dilene do Nascimento, ressalta que existia, nesse período,
uma fragilidade social. “Já faltavam alimentos em geral, e as populações
estavam mais debilitadas. A gripe espanhola foi causada, como acontece com este
novo coronavírus, por um vírus até então desconhecido. A evolução de uma
epidemia depende do contexto histórico de cada época”, afirma.
A letalidade e a taxa de
infecção nos lugares em que chegava, porém, rapidamente cresciam. “Tanto pela
propagação do vírus quanto pela dificuldade do tratamento. Nem se sabia que era
o vírus da gripe porque ele ainda não havia sido identificado”, diz José Cássio
de Moraes. No mundo, mais de 500 milhões de pessoas foram infectadas. Cerca de
50 milhões de óbitos foram registrados. Desses, 30 milhões foram na China,
quando 10% da população foi dizimada pela doença. No Brasil, de acordo com
Moraes, foram registradas 35 mil mortes. Não há estatísticas precisas sobre
quantos foram infectados no país. “De seis a oito semanas, 0,2% da população
brasileira morreu. Na época, São Paulo tinha 579 mil pessoas. Dessas, 176 mil
foram infectadas em um mês e meio e 5 mil morreram”, afirma o pesquisador.
Como no atual enfrentamento à
pandemia da Covid-19, a gripe espanhola também causou comoção social. Mas não
chegou a ser criado um protocolo de isolamento social como está sendo feito
agora. “As recomendações falavam em evitar aglomerações, principalmente à
noite. Hoje, sabemos que qualquer aglomeração, de dia ou à noite, importa.
Também havia orientação para não fazer visitar, ter cuidados com a higiene. Era
recomendado também fazer gargarejo com água e sal, mas isso está descartado,
pois não há qualquer evidência científica, em relação à eficácia”, pontua
Moraes.
A DEMORA EM ENTENDER
GRAVIDADE DO VÍRUS SE REPETE
O principal legado da gripe
espanhola para o Brasil, na avaliação da historiadora da Casa de Oswaldo Cruz
(coc/fiocruz) e professora de pós-graduação em história das ciências e da
saúde, Dilene do Nascimento, foi a criação, em dezembro de 1919, do
Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP), que daria maior amplitude aos
serviços sanitários federais.
Segundo a pesquisadora, além
do desconhecimento sobre a doença, as instituições públicas de saúde eram
precárias na época. “No Rio de Janeiro, por exemplo, o diretor de Saúde (Carlos
Seidl) demorou muito para tomar medidas. Ele foi demitido e substituído por
Theóphilo Torres, que procurou correr atrás e diminuir os danos, mas a epidemia
já estava instalada. A transmissão foi tão rápida, que, em dois meses, morreram
15 mil pessoas no Rio de Janeiro”, conta a historiadora.
Em alguns lugares do mundo, a
demora em entender a gravidade de um novo vírus que já estava circulando foi um
erro repetido em 2020. Na China, até 23 de janeiro só 14% tinham sido
identificados. “Hoje, existe a recomendação para ficar em casa. Na época, não
houve. Em 1918 não havia pessoas nas ruas não porque houve medida das
autoridades de saúde pública. A professora, a diretora, o coveiro haviam
morrido. O cenário era dramático. Pessoas não podiam enterrar seus entes e
colocavam os corpos na porta de casa para carrocinha passar e levar para
enterro em vala comum”, afirma.
Para o chefe do serviço de
Infectologia do Hospital das Clínicas (HC) e professor associado da Faculdade
de Medicina da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Paulo Sérgio Ramos, a
principal lição deixada por pandemias anteriores é que planos de contingência
precisam ser criados tão logo ocorram os alertas da Organização Mundial de
Saúde (OMS) para casos de emergência em saúde pública. “O principal erro é que
não temos conseguido estabelecer políticas públicas direcionadas às questões
sociais. Nesta epidemia da Covid-19, temos observado que a vulnerabilidade
social dos grupos de risco, principalmente os idosos, tem sido uma questão que
não estamos conseguindo resolver”, observa o infectologista.
Dilene do Nascimento ressalta
que epidemias são um problema coletivo e, portanto, a responsabilidade é do
estado. “Precisamos aprender que não adianta um indivíduo tomar uma medida.
Todos precisam tomar. É efetivamente um problema coletivo. Por ser coletivo, o
estado tem que cuidar, resolver e suprir as pessoas para elas não morrerem de
fome”, enfatiza a historiadora. Fonte: Diario de Pernambuco - Publicado em:
04/04/2020
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