sexta-feira, 17 de abril de 2020

As lições aprendidas - e os erros que voltamos a cometer - da gripe espanhola de 1918

Em 60 dias, uma pandemia conseguiu deixar um rastro de 35 mil mortes no Brasil. Caixões eram empilhados nos cemitérios por falta de coveiros. Escolas estavam sem aulas. O comércio estava fechado. As ruas, vazias. Os espaços não foram esvaziados por orientação das autoridades sanitárias, como tem acontecido durante a pandemia do novo coronavírus. Não havia pessoas nesses lugares porque elas estavam doentes ou mortas. Apenas no Recife, na época com 238 mil habitantes, 1.250 óbitos foram registrados, ou seja, 0,5% da população morreu em menos de dois meses. O ano era 1918, e o mundo enfrentava a gripe espanhola, até hoje considerada por infectologistas “o maior holocausto médico da história”. O episódio deixou marcas pelo horror, mas também ficaram lições que podem ser aprendidas mais de um século depois.

Historiadores apontam que a epidemia da gripe espanhola – que, apesar do nome, não surgiu na Espanha, mas em um acampamento militar no Kansas, Estados Unidos – chegou ao Brasil pelo Porto de Recife, a bordo do navio português Demerara, em setembro de 1918, “ao que tudo indica vinda de Dakar, trazida por marinheiros brasileiros que prestaram serviço militar na região”, de acordo com os virologistas Hermann Schatzmayr e Maulori Cabral, no livro A virologia no estado do Rio de Janeiro. À medida que os casos aumentavam em número e gravidade, o pânico começou a tomar conta das cidades, que se tornaram cidades-fantasma, com os serviços parando. “Restaram os serviços públicos da área da saúde, totalmente caóticos e sem condições de prestar auxílio aos que os procuravam, pois sequer a etiologia real da epidemia era conhecida”, relatam Schatzmayr e Cabral.

O pesquisador José Cássio de Moraes, integrante da Comissão de Epidemiologia da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e professor da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, lembra que a gripe espanhola surgiu no contexto da Primeira Guerra Mundial. “Em março de 1918, há o registro no acampamento militar no Kansas. Em maio, chega ao leste da África. Em agosto, na França. Em setembro, na América do Sul. O espalhamento foi mais lento no mundo (em comparação com a velocidade da Covid-19) porque os meios de transporte não eram os de hoje”, compara.

A historiadora da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) e professora de pós-graduação em história das ciências e da saúde, Dilene do Nascimento, ressalta que existia, nesse período, uma fragilidade social. “Já faltavam alimentos em geral, e as populações estavam mais debilitadas. A gripe espanhola foi causada, como acontece com este novo coronavírus, por um vírus até então desconhecido. A evolução de uma epidemia depende do contexto histórico de cada época”, afirma.

A letalidade e a taxa de infecção nos lugares em que chegava, porém, rapidamente cresciam. “Tanto pela propagação do vírus quanto pela dificuldade do tratamento. Nem se sabia que era o vírus da gripe porque ele ainda não havia sido identificado”, diz José Cássio de Moraes. No mundo, mais de 500 milhões de pessoas foram infectadas. Cerca de 50 milhões de óbitos foram registrados. Desses, 30 milhões foram na China, quando 10% da população foi dizimada pela doença. No Brasil, de acordo com Moraes, foram registradas 35 mil mortes. Não há estatísticas precisas sobre quantos foram infectados no país. “De seis a oito semanas, 0,2% da população brasileira morreu. Na época, São Paulo tinha 579 mil pessoas. Dessas, 176 mil foram infectadas em um mês e meio e 5 mil morreram”, afirma o pesquisador.

Como no atual enfrentamento à pandemia da Covid-19, a gripe espanhola também causou comoção social. Mas não chegou a ser criado um protocolo de isolamento social como está sendo feito agora. “As recomendações falavam em evitar aglomerações, principalmente à noite. Hoje, sabemos que qualquer aglomeração, de dia ou à noite, importa. Também havia orientação para não fazer visitar, ter cuidados com a higiene. Era recomendado também fazer gargarejo com água e sal, mas isso está descartado, pois não há qualquer evidência científica, em relação à eficácia”, pontua Moraes. 

A DEMORA EM ENTENDER GRAVIDADE DO VÍRUS SE REPETE
O principal legado da gripe espanhola para o Brasil, na avaliação da historiadora da Casa de Oswaldo Cruz (coc/fiocruz) e professora de pós-graduação em história das ciências e da saúde, Dilene do Nascimento, foi a criação, em dezembro de 1919, do Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP), que daria maior amplitude aos serviços sanitários federais.
           
Segundo a pesquisadora, além do desconhecimento sobre a doença, as instituições públicas de saúde eram precárias na época. “No Rio de Janeiro, por exemplo, o diretor de Saúde (Carlos Seidl) demorou muito para tomar medidas. Ele foi demitido e substituído por Theóphilo Torres, que procurou correr atrás e diminuir os danos, mas a epidemia já estava instalada. A transmissão foi tão rápida, que, em dois meses, morreram 15 mil pessoas no Rio de Janeiro”, conta a historiadora.

Em alguns lugares do mundo, a demora em entender a gravidade de um novo vírus que já estava circulando foi um erro repetido em 2020. Na China, até 23 de janeiro só 14% tinham sido identificados. “Hoje, existe a recomendação para ficar em casa. Na época, não houve. Em 1918 não havia pessoas nas ruas não porque houve medida das autoridades de saúde pública. A professora, a diretora, o coveiro haviam morrido. O cenário era dramático. Pessoas não podiam enterrar seus entes e colocavam os corpos na porta de casa para carrocinha passar e levar para enterro em vala comum”, afirma.

Para o chefe do serviço de Infectologia do Hospital das Clínicas (HC) e professor associado da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Paulo Sérgio Ramos, a principal lição deixada por pandemias anteriores é que planos de contingência precisam ser criados tão logo ocorram os alertas da Organização Mundial de Saúde (OMS) para casos de emergência em saúde pública. “O principal erro é que não temos conseguido estabelecer políticas públicas direcionadas às questões sociais. Nesta epidemia da Covid-19, temos observado que a vulnerabilidade social dos grupos de risco, principalmente os idosos, tem sido uma questão que não estamos conseguindo resolver”, observa o infectologista.

Dilene do Nascimento ressalta que epidemias são um problema coletivo e, portanto, a responsabilidade é do estado. “Precisamos aprender que não adianta um indivíduo tomar uma medida. Todos precisam tomar. É efetivamente um problema coletivo. Por ser coletivo, o estado tem que cuidar, resolver e suprir as pessoas para elas não morrerem de fome”, enfatiza a historiadora. Fonte: Diario de Pernambuco - Publicado em: 04/04/2020  

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