Anos atrás, lembro-me de assistir a um documentário inglês
que nunca mais esqueci. Sobre a formação dos taxistas em Londres. Coisa
exigente?
Digamos apenas isso: desconfio que um doutorado em Harvard
seria ligeiramente mais fácil. Para dirigirem em Londres, os candidatos
entregam-se a uma preparação minuciosa, fatigante, demencial, memorizando cada
avenida, rua, beco com precisão fotográfica.
Depois, quando se sentem preparados para o exame oral,
apresentam-se perante o Grande Inquisidor - uma figura sinistra em seu
requintado sadismo - que colocava ao candidato tremelicante perguntas do
gênero: "Eu estou na rua X e pretendo ir para a rua Y. Qual o trajeto mais
próximo?"
O candidato descrevia o trajeto de memória - isso, claro, se
não desmaiasse ou tivesse um infarto entretanto. Não sei como estão as coisas hoje em dia. Em Londres, não
tenho tido motivos de queixa.
Em Lisboa, pelo contrário, cresce o número de motoristas que
desconhece endereços básicos. De tal forma que eu próprio já me ofereci várias
vezes para dirigir o táxi. A culpa, segundo parece, é do GPS: se o endereço não existe
no GPS, nada feito. Usar a cabeça (e a memória) é primitivismo do século
passado.
Aliás, a cultura do GPS é tão avassaladora que, segundo as
notícias, as próprias gôndolas de Veneza passarão a ter um aparelho para ajudar
os gondoleiros.
Imagino a cena: o casal, abraçado e apaixonado, passando sob
a Ponte dos Suspiros. E, no momento em que se preparam para um beijo, a
maquineta dispara com a sua voz mecânica: "Daqui a trinta metros, vire à
direita." Se o amor sobrevive a isto, sobrevive a tudo. Fonte: Folha de São Paulo - 21/10/2013 - João Pereira Coutinho, escritor
português.
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