Seu nome completo era Simón José Antonio de la Santísima Trinidad Bolívar Palacios y Blanco
Se estivesse vivo, o que ele pensaria do culto à sua imagem e da "revolução" pregada em seu nome? "Ele acharia isso muito engraçado", acredita o autor de uma biografia do herói sul-americano publicada em 2009.
Na Venezuela, tudo o que se relaciona às conquistas independentistas latino-americanas precisa ser descrito em tom solene, principalmente os episódios dos quais o líder caraquenho Simón Bolívar (1783-1830) fez parte. Por causa de seu papel predominante nos processos de emancipação da Bolívia, Colômbia, Equador, Panamá, Peru e seu país natal, o venezuelano recebeu o apelido de "Libertador".
Os acontecimentos que levaram às independências passaram para a História como episódios cheios de atos heróicos. As batalhas foram narradas em linguagem grandiloquente, venerando os protagonistas. Esses foram um instrumento útil nas mãos da elite política crioula quando a Capitania Geral da Venezuela se tornou independente do império espanhol para converter-se em república autônoma, dotada de certa coesão territorial e identidade própria. A exaltação de heróis nacionais contribuiu para criar essa identidade.
A personificação da política
"Tradicionalmente, a dimensão dos componentes pessoais da política na América Latina é muito grande e a tendência a interpretações pessoais dos acontecimentos políticos foi crescendo com o passar do tempo. Isso tem como efeito negativo a diminuição da confiança nas instituições e, em consequência, a longevidade e o rendimento das democracias se veem severamente limitados", observa Günther Maihold, do Instituto Alemão de Assuntos Internacionais e de Segurança (SWP, da sigla do alemão) de Berlim.
É preciso levar tudo isso em conta para compreender a função que teve o culto à vida e obra de Bolívar no século 19. Isso também ajuda a explicar a crescente glorificação do pensamento bolivariano por parte do presidente venezuelano, Hugo Chávez. Ele tem investido parte do seu capital político e econômico na promoção de sua própria versão do bolivarismo – tanto no seu país quanto nas demais nações latino-americanas que lhe dão ouvidos.
De herói a traidor a herói...
"No final de sua vida, Bolívar foi considerado traidor da pátria. Expulso da Venezuela, morreu na Colômbia. Apenas 12 anos depois, quando seu corpo foi levado de volta ao seu país, começou o culto à sua efígie. Devido à lucidez de suas reflexões, ele parecia ser a única pessoa capaz de dar sustento político e ideológico à Venezuela", explica Norbert Rehrmann, professor da Universidade Técnica de Dresden e autor de uma bibliografia sobre Simón Bolívar publicada em abril de 2009.
"No século 19, a Venezuela precisava de algo ou alguém que personificasse a ideologia nacionalista e esse alguém era Bolívar, que havia propagado a noção de um Estado venezuelano quando a nação ainda não existia dessa forma", complementa Rehrmann. Portanto, tanto o legado intelectual deixado pelo Libertador – cartas, discursos e manifestos políticos – quanto seu poder iconográfico são as chaves para compreender o fascínio por Bolívar.
Gênio e figura
Simón Bolívar é um personagem complexo. Para o professor Norbert Rehrmann, tal complexidade tem ocasionado, há dois séculos, contradições nas descrições do herói venezuelano. Ora ele é tido como um convencido liberal, ora como precursor do socialismo contemporâneo – essas são apenas duas das várias leituras que se fazem dos documentos deixados pelo ilustre militar. Por outro lado, as imagens que oscilam entre guerreiro invencível, gênio incompreendido e mártir que morreu vestindo uma camisa emprestada, vítima de ingratidões e intrigas palacianas, servem como temas para extensas monografias.
Para Rehrmann, a imagem do Libertador de que Hugo Chávez se vale atualmente não representa a realidade. "Apresentar Bolívar como um anti-imperialista ou pioneiro do socialismo é um discurso que só pode causar riso. Bolívar era um aristocrata, um oligarca cuja aversão a escravos e mestiços vinha desde criança. De qualquer forma, não era um político interessado na justiça social ou na participação política do povo. Essa imagem de Bolívar é absurda, ainda que não seja invento de Chávez. Essa imagem do Libertador tem precedentes".
Uma imagem impalpável
Segundo Rehrmann, até 1816 Bolívar era conhecido na Alemanha como um liberal, conquistando admiração dos grandes liberais alemães por causa de sua liderança em um movimento de resistência. "O maior historiador liberal alemão do século 19, Georg Gottfried Gervinus, descobriu Bolívar em 1815 e ficou admirado", diz Rehrmann.
"Gervinus se distanciou radicalmente de Bolívar em 1820, concordando com muitos críticos latino-americanos ao percebê-lo como um perigo por propiciar a instauração de um Estado centralista e autoritário. Os líderes liberais da época tinham ideias muito diferentes das que Bolívar pregava."
Segundo Rehrmann, Bolívar era criticado na América Latina por sua insistência em instaurar um senado hereditário e uma presidência vitalícia. "Na realidade, eram características de uma monarquia disfarçada", comenta. "Hoje, muitos alemães de esquerda tendem a aplaudir os ideais bolivarianos assumidos por Hugo Chávez com o argumento de que o século 19 era uma época diferente e que não se pode julgar um homem daquele tempo com base em critérios contemporâneos. Mas isso é absolutamente errado."
Bolívar e os bolivarianos
Seu nome completo Hugo Rafael Chávez Frías
Em homenagem ao Libertador, sua terra natal foi rebatizada de República Bolivariana da Venezuela. Além disso, o adjetivo "bolivariano" foi acrescentado aos nomes de quase todas as instituições estatais, buscando alinhar a imagem nacional ao projeto ideológico que Hugo Chávez tem planejado para o país: a "revolução bolivariana". Mas como podemos entender o que essa terra tem de bolivariana se, aparentemente, não existe acordo sobre o que isso significa?
"São feitas tantas interpretações do pensamento de Bolívar e, mesmo no discurso de Chávez existem tantas variantes, que é impossível encontrar um núcleo do pensamento bolivariano ou um fragmento que possa ser considerado comum a todos os venezuelanos. O pensamento bolivariano é uma fonte de onde cada um toma o que precisa", observa Maihold.
O prócer maquiado
Rehrmann concorda com Maihold, acrescentando que a doutrina bolivariana de Chávez disfarça qualidades que o próprio herói nunca escondeu, atribuindo-lhe outras que o prócer nunca teve, além de ignorar uma que tanto Bolívar quanto Chávez têm em comum: "ambos são defensores de um Estado centralista e autoritário".
"Mas Chávez faz uma interpretação grotesca do líder ao retratá-lo com uma boina vermelha. Se estivesse vivo, Bolívar ficaria enfurecido ou riria muito porque, afinal de contas, ele não tinha nada a ver com as premissas políticas defendidas por Chávez – pelo menos retoricamente", ressalta professor da Universidade Técnica de Dresden. Fonte: Deutsche Welle - 15.03.2010
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