Um
dos males que assolam nossa educação é a esperança vã de pensadores e
legisladores de que uma escola que mal consegue ensinar o básico resolva todos
os problemas sociais e éticos do país. Eles criaram um sistema com um currículo
imenso, sistemas de livros didáticos em que o objetivo até das disciplinas
científicas é formar um cidadão consciente e tolerante. Responsabilizaram a
escola pela formação de condutas que vão desde a preservação do meio ambiente
até os cuidados com a saúde; instituíram cotas raciais e forçaram as escolas a
receber alunos com necessidades especiais. A agenda maximalista seria uma
maneira de sanar desigualdades e corrigir injustiças. O Brasil deveria
questionar essa agenda.
PRIMEIRA PERGUNTA: NOSSAS ESCOLAS CONSEGUEM
DAR CONTA DESSE RECADO? A resposta é, definitivamente, não. Estão aí todas as
avaliações nacionais e internacionais mostrando que a única igualdade que nosso
sistema educacional conseguiu atingir é ser igualmente péssimo. Copiamos o
ponto final de programas adotados nos países europeus sem termos passado pelo
desenvolvimento histórico que lhes dá sustentação.
SEGUNDA PERGUNTA: ESSE DESEJO EXPANSIONISTA
FAZ BEM OU MAL AO NOSSO SISTEMA EDUCACIONAL? Será um caso em que mirar no
inatingível ajuda a ampliar o alcançável ou, pelo contrário, a sobrecarga faz
com que a carroça se mova ainda mais devagar? Acredito que seja o último. Por
várias razões. A primeira é simplesmente que essas demandas todas tornam
impossível que o sistema tenha um foco. Perseguir todas as ideias que aparecem
– mesmo que sejam todas nobres e excelentes – é um erro. Infelizmente, a
maioria dos nossos intelectuais e legisladores não tem experiência
administrativa, e acredita ser possível resolver qualquer problema criando uma
lei. No confronto entre intenções e realidade, a última sempre vence. A segunda
razão para preocupação é que, com uma agenda tão extensa e bicéfala – formar o
cidadão virtuoso e o aluno de raciocínio afiado e com conhecimentos sólidos –,
sempre é possível dizer que uma parte não está sendo cumprida porque a
prioridade é a outra: o aluno é analfabeto, mas solidário, entende? (Com a
vantagem de que não há nenhum índice para medir solidariedade.) E, finalmente,
porque quando as intenções ultrapassam a capacidade de execução do sistema o
que ocorre é que o agente – cada professor ou diretor – vira um legislador,
cabendo a ele o papel de decidir quais partes das inatingíveis demandas vai
cumprir. Uma medida que deveria estimular a cidadania tem o efeito oposto:
incentiva o desrespeito à lei, que é a base fundamental da vida em sociedade.
TERCEIRA PERGUNTA: MESMO QUE TODAS ESSAS
NOBRES INTENÇÕES FOSSEM EXEQUÍVEIS, SUA EXECUÇÃO CUMPRIRIA AS ASPIRAÇÕES DE
SEUS MENTORES, CONSTRUINDO UM PAÍS MENOS DESIGUAL? Eu diria que não apenas não
cumpriria esses objetivos como iria na direção oposta. Deixe-me dar um exemplo
com essas novas matérias inseridas no currículo do ensino médio – música,
sociologia e filosofia. A lógica que norteou a decisão é que não seria justo
que os alunos pobres fossem privados dos privilégios intelectuais de seus
colegas ricos. O que não é justo, a meu ver, é que a adição dessas disciplinas
torna ainda mais difícil para os pobres se equiparar aos alunos mais ricos nas
matérias que realmente vão ser decisivas em sua vida. A
desigualdade entre os dois grupos tende a aumentar. A triste realidade é que,
por viverem em ambientes mais letrados e com pais mais instruídos, alunos de
famílias ricas precisam de menos horas de instrução para se alfabetizar. É
pouco provável que um aluno rico saia da 1ª série sem estar alfabetizado,
enquanto é muito provável que o aluno pobre chegue ao 3° ano nessa condição. O
aluno rico pode, portanto, se dar ao luxo de ter aula de música. Para nivelar o
jogo, o aluno pobre deveria estar usando essas horas para se recuperar do
atraso, especialmente nas habilidades basilares: português, matemática e
ciências. É o domínio dessas habilidades que lhe será cobrado quando ingressar
na vida profissional. Se esses pensadores querem a escola como niveladora de
diferenças, se a diferença que mais impacta a qualidade de vida das pessoas é a
de renda, e se a fonte principal de renda é o trabalho, então precisamos de um
sistema educacional que coloque ricos e pobres em igualdade de condições para
concorrer no mercado de trabalho. O que, por sua vez, presume uma educação
desigual entre pobres e ricos, fazendo com que a escola dê aos primeiros as
competências intelectuais que os últimos já trazem de casa. Estou argumentando
baseado em uma lógica supostamente de esquerda (digo supostamente porque, nesse
caso, é transparente que as boas intenções dos revolucionários de poltrona só
aprofundam as desigualdades que eles pretendem diminuir).
O mercado de trabalho valoriza mais as
habilidades cognitivas e emocionais não porque os nossos empregadores sejam
mesquinhos, mas porque, em um mercado competitivo, precisam remunerar seus
trabalhadores de acordo com sua produtividade. Essa é a lógica inquebrantável
do sistema de livre-iniciativa. Não adianta pedir ao gerente de recursos
humanos que seja "solidário" na hora da contratação e leve em conta
que os candidatos à vaga vêm de origens sociais diferentes, porque se o
recrutador selecionar o funcionário menos competente, o mais certo é que em
breve ambos estejam solidariamente no olho da rua. Não conheço nenhum estudo
que demonstre o impacto de uma educação filosoficamente inclusiva sobre o
bem-estar das pessoas. Mas há vários estudos empíricos sobre a desigualdade no
Brasil. O que eles informam é assustador: o fator número 1 na explicação das
desigualdades de renda é, de longe, a desigualdade educacional. Ao criarmos uma
escola sobrecarregada com a missão de não apenas formar o brasileiro do futuro
mas corrigir as desigualdades de 500 anos de história, nós nos asseguramos de
que ela se tornará um fracasso. A escola não pode fracassar, pois é a alavanca
de salvação do Brasil.
O tipo de escola pública que queremos é uma
discussão em última instância política, e não técnica. É legítimo, embora
estúpido, que a maioria dos brasileiros prefira uma educação que fracasse em
ensinar a tabuada mas ensine bem a fazer um pagode. Acrescento apenas uma
indispensável condição: que a população seja informada, de modo claro e
honesto, sobre as consequências de suas escolhas. Quais as perdas e os ganhos
de cada caminho. O que é, aí sim, antidemocrático e desonesto é criar a ilusão
de que não precisamos fazer escolhas, de que podemos tudo e de que
conseguiremos obter tudo ao mesmo tempo, agora. Infelizmente, é exatamente isso
que vem sendo tentado. Nossas lideranças se valem do abissal desconhecimento da
maioria da população sobre o que é uma educação de excelência para vender-lhe a
possibilidade do paraíso terreno em que professores despreparados podem formar
o novo homem e o profissional de sucesso. Essa utopia, como todas as outras,
acaba em decepção e atraso. Essa pretensa revolução, como todas as outras,
termina beneficiando apenas os burocratas que a implementam. Fonte: Gustavo Ioschpe, Veja
- 09/04/2012
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