Cibergurus abominam era pré-internet e inventam teorias para
explicar uma realidade que ainda faz pouco sentido prático
Como acontece em todas as eras, a da internet tem sua
própria geração de gurus. São os “ciberteóricos” que sonham com um futuro
eletrônico aperfeiçoável e anunciam preceitos sobre a necessidade de refazer o
mundo. Como muitos que se revoltaram contra a religião, eles trazem não a paz,
mas a espada. A mudança é inevitável. É preciso abandonar os velhos hábitos.
Entretanto, os ciberteóricos pertencem a uma espécie peculiar de estilo: eles
agitam e defendem uma revolução constante, que, no entanto, beneficiará
principalmente as gigantes da tecnologia, diante de cuja imagem virtual eles se
curvam.
O jargão dos ciberteóricos revela um ódio adolescente do
mundo. Jay Rosen, famoso ciberguru do “futuro da notícia”, não perde uma
oportunidade para menosprezar empresas editoriais associando-as ao termo
“legado”, no sentido de sistema antiquado. Outro termo favorito dos
ciberteóricos é “disrupt” (romper, desconstruir, em português). A maioria das
pessoas acha a ideia irritante, mas para eles, quanto mais a tecnologia romper
as práticas estabelecidas, mais emocionante ela se tornará.
Outro cibercharlatão, o jornalista Jeff Jarvis, escreveu no
livro O Que o Google Faria?, de 2009: “A educação é uma das instituições que
mais merecem ser desconstruídas”. (O tom de repúdio ressentido é típico.) Que
forma deveria assumir esta subversão? A startup Coursera, por exemplo, promete
transformar o ensino universitário, oferecendo trechos de aulas em vídeo e
fazendo que os alunos deem notas para os trabalhos uns dos outros. Se você é um
ciberteórico, este truque é um plano brilhante para alavancar o poder dos
indivíduos. Se não for, é um plano brilhante para descarregar a maior parte do
trabalho do ensino nas costas dos alunos.
Outra suposta qualidade do Coursera é o fato de ele ser
“aberto”, como tudo agora deve ser. O cibercredo do “aberto” soa tão liberal e
amigável que é fácil deixar de prestar atenção à sua hipocrisia. As grandes
empresas de tecnologia, que são os exemplos preferidos dos ciberteóricos sobre
a próxima ordem mundial, são tudo menos abertas. O Google não divulga seu
algoritmo de busca; a Apple tem um notório sigilo sobre seus produtos; o
Facebook costuma mudar as opções de privacidade dos usuários. Em busca do
lucro, tais empresas constroem freneticamente utopias semiabertas de conteúdo
proprietário.
O software de código aberto, no modelo do Linux, era o
exemplo favorito do motivo pelo qual o conceito aberto predomina sobre o
fechado. Entretanto, apesar dos sucessos admiráveis (particularmente na
indústria), o software comercial e fechado ainda predomina. A maioria dos
clientes sabe, por experiência própria, que o sistema Android dos celulares é
customizado e fechado novamente pelas fabricantes.
“Ter oleodutos, funcionários, produtos ou mesmo propriedade
intelectual não é mais a chave do sucesso”, escreveu Jarvis em 2009. “O sucesso
está na abertura.” Qual é, neste momento, a empresa de maior valor de mercado
do mundo? A Apple, que vende produtos físicos, guarda seu acervo de patentes e
é tão “aberta” quanto o Fort Knox (posto militar do Exército dos Estados
Unidos).
O plano genial do Coursera para “desconstruir” o ensino
universitário pode ser aprendido numa palestra do TED (sigla para tecnologia,
educação e desenvolvimento). São apresentações com a duração máxima de 18
minutos, com abundância de recursos, que oferecem ideias do tamanho de um
nugget. Uma palestra do TED tem o formato de uma coleção de histórias reunidas
sob um título ridiculamente simples, num vídeo que depois os entusiastas das
redes sociais enviam aos amigos.
O título perfeito de uma apresentação TED é o recente Os
Jogos que Podem lhe Dar Dez Anos a Mais de Vida, da ciberteórica da gameficação
Jane McGonigal. O que poderia ser este jogo? Ligar um joystick a um pulmão de
aço? Não, trata-se de um pequeno jogo online criado por ela chamado
SuperBetter. Até o momento, não há estudos com grande número de pessoas que
mostrem que o game faz você viver dez anos a mais.
REBANHO.
Os pensadores cibernéticos levaram a ideia de sabedoria
coletiva para um lugar que mal se assemelha à realidade que conhecemos. Agora é
possível propor seriamente que há ocasiões em que “a pessoa mais inteligente da
sala é a sala”, como afirma o subtítulo do livro do teórico David Weinberger,
Too Big to Know, publicado em janeiro. Segundo sua ideia estranhamente
autodestrutiva, os livros são formas ultrapassadas de organização da
“informação”, e o volume total das informações agora é tão esmagador que talvez
admitamos que “a rede” saiba mais do que nós.
Se a tese fosse correta, o seu livro seria dispensável,
porque um número aleatório de blogueiros poderia escrever coisas melhores. O
livro é também tipicamente cibernético por conter um ódio pseudo-democrático a
qualquer forma de especialização. “A internet”, proclama ele, “permite que os
grupos desenvolvam mais ideias do que um indivíduo sozinho”. Assim como a
escrita e a conversação, desde que foram criadas.
É surpreendente a frequência com que a Wikipedia é citada
como paradigma de uma “criação do conhecimento” comunitária, considerando que a
Wikipedia proíbe explicitamente a criação de conhecimento novo. Sua lei básica
é “nenhuma pesquisa original”, com exceção da menção a “fatos” ou “ideias” que
não tenham sido já divulgados em outros lugares. A obediência ao mandamento faz
que a Wikipedia dependa de fontes citadas, incluindo artigos de jornais e de
revistas acadêmicas, no que se refere ao “conhecimento” que ela contém. Isto
não significa que a Wikipedia não tenha utilidade – longe disso –, mas não é um
exemplo daquilo que se afirma com tanta frequência que ela seja.
Os ciberteóricos não ousam distinguir informação de
conhecimento, porque isto exigiria que eles fizessem a triagem intelectual que
o seu sucesso retórico exige que se evite. Um livro contém menos informações,
em termos de bytes, do que um vídeo de um gatinho. E se você é um sábio
cibernético, provavelmente desprezará os livros. Clay Shirky, autor de Lá Vem
Todo Mundo, de 2008 – um manifesto coletivo que agora é considerado um
exercício desesperado de apoio a serviços que já foram populares, como Flickr –
escreveu no mesmo ano: “Ninguém lê Guerra e Paz. É muito longo, e não é tão
interessante”. (Na verdade, segundo o Nielsen BookScan, Guerra e Paz vendeu em
2011 cerca de 17 mil cópias somente no Reino Unido).
Os livros são importantes para o tagarela cibernético em
busca de projeção pessoal, mas de uma maneira diferente. Jarvis contou nos
agradecimentos de sua publicação mais recente, Public Parts: “(Seth) Godin é o
culpado por eu escrever livros. Um dia, ele me mandou sentar e falou que eu
seria um tolo se não escrevesse um livro – e seria ainda mais tolo se achasse
que o livro era o objetivo. Não, ele disse, o livro serviria para eu construir
a minha reputação diante do público, e assim levaria a outras coisas. E foi o
que aconteceu”. É isso: se você escreve um livro achando que o objetivo é o
livro, você é tolo. A função exata de um livro é a de um cartão de visita que
lhe abre portas e faz você ser convidado para lugares onde as coisas acontecem
de verdade. Os que pensam que a literatura, o pensamento e a argumentação são
em si objetivos nobres são tolos. É esta a afirmação do anti-intelectual
ultramoderno.
SUPERCOMPARTILHAMENTO.
Alguns poderiam
considerar um fracasso dos ciberteóricos o fato de o mundo que conhecemos hoje
ter tão pouco a ver com as descrições deles. As pessoas ainda leem romances
russos; o mercado de massa não foi substituído por “nichos” (basta perguntar à
autora de Cinquenta Tons de Cinza, E.L. James). O aberto não é o modelo
predominante de sucesso empresarial da internet. O New York Times hoje tem
cerca de 600 mil assinantes digitais, embora os dogmáticos cibernéticos
jurassem que o acesso pago nunca funcionaria.
No artigo O Que a Mídia Pode Aprender com o Facebook, Jarvis
fala que os jornais deveriam imitar o modelo de Mark Zuckerberg: “A produção é
cara. O compartilhamento não é caro e é escalável. O Facebook logo atenderá um
bilhão de pessoas com uma equipe equivalente à de um grande jornal”. Faça os leitores
se encarregarem da maior parte ou de todo o trabalho e, pronto! O legado da
mídia (a ultrapassada) é transformado na mídia social que dá dinheiro.
Com a mídia “social” ocorre o mesmo que com o conceito de
compartilhamento: os cibernéticos adotaram um termo plausível e deram um
significado novo e instrumental. Social hoje implica uma técnica comercial para
convencer usuários a revelar mais informações aos anunciantes sobre suas
“redes” de amizade e de contatos comerciais, e para “conectar” usuários a
determinadas marcas por meio do botão “curtir” – e logo, como sugerem
experimentos do Facebook, haverá um botão “querer”.
Mesmo a leitura de livros – se é que persistir – precisará
ser transformada em “leitura social”, como se os livros não fossem já produtos
sociais. Entretanto, não importa se os cibergurus estão equivocados a respeito
do presente, porque seu valor equivale mais ao de um Nostradamus sem fios. O
cibermaníaco idealiza um ciberfuturo perfeito e declara que ele já chegou, ou é
tão vago a respeito da data que talvez jamais possa ser refutado. O título de
uma recente palestra no TED de Clay Shirky é um exemplo deste presságio que não
pode ser desmentido: Como a Internet Transformará (Algum Dia) o Governo.
Os ciberteóricos em geral poderiam talvez ser tolerados como
inócuos futuristas, não fosse que muitos deles, pela influência do seu trabalho
de consulta e pelos seus palanques virtuais, neste momento estão preocupados em
promover um vandalismo cultural. Tudo o que cheirar a coisa ultrapassada da era
pré-digital terá de ser derrubado, “rompido” e refeito à sagrada imagem do
Google e da Apple, com a exceção de uma maior abertura para as sondagens
digitais sobre o oligopólio das companhias de internet. Vida longa para o
compartilhamento, a leitura social, o trabalho voluntário de um estudante ou os
participantes da “comunidade” online de uma empresa, e a entrega dos seus
documentos às megacorporações que exploram dados e controlam a “nuvem”.
Os ciberteóricos adoram aplicar o adjetivo “inteligente” a
si mesmos e aos colegas, mas, como grupo, eles são os modelos de
anti-intelectuais mais destacados dos nossos dias – pequenos revolucionários da
tela de toque e do Twitter.
MARTELADAS NOS GURUS
TUDO É ABERTO
O termo é amigável, mas também é hipócrita: as empresas que
representam a filosofia, como Google,
Apple e Facebook têm posturas dúbias.
A EDUCAÇÃO JÁ ERA
Jeff Jarvis diz que a educação tem de ser
desconstruída - mas isso acaba deixando a maior parte do trabalho para
os alunos.
O FIM DA MÍDIA
Jay Rosen, guru do "futuro da notícia". diz que o
atual sistema editorial é antiquado. Mas o NY Times tem 600 mil assinantes pagos
TED
As conferências apresentam ideias do "do tamanho de um
nugget": ou seja, "ideias fast food", que depois os entusiastas
das redes sociais enviam aos amigos.
INTERNET INTELIGENTE
O teórico cibernético
David Weinberger diz que os livros são ultrapassados e a " internet sabe
mais do que nós.
CROWD SOURCING
A Wikipedia prega que
produz conhecimento coletivamente, mas depende de fontes e pesquisas de outros lugares.
SUPERCOMPARTILHAMENTO
Social hoje é uma técnica comercial para que as pessoas
revelem mais informações pessoais nas redes. Até a leitura se transformou em
"leitura social".
Fonte: O Estado de S. Paulo-03/03/2013,Steven Poole, News Statesmen
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