Primeiro, a crise da pandemia expôs rupturas na economia. Agora, a guerra na Ucrânia afeta os mercados de commodities. Tais interrupções estão estimulando uma mudança na concepção das cadeias de abastecimento.
Certamente, você já ouviu
falar em globalização. Mas e sobre desglobalização?
Interrupções nas cadeias de
abastecimento, aumento de preços, escassez – todas essas realidades diárias
poderiam ser conectadas a um processo conhecido como desglobalização.
Especialistas afirmam,
inclusive, que a guerra na Ucrânia, junto com a pandemia, marca um ponto de
virada rumo a uma era desglobalizada.
Mas que forma ou que rumo
tomaria esse novo mundo?
A globalização econômica é a
integração da economia mundial em termos de comércio, um processo que tem seus
defensores e críticos.
De acordo com quem defende
esse conceito, a globalização aumenta o padrão de vida das pessoas,
retirando-as da pobreza.
Por outro lado, os louros
dessa globalização não costumam ser divididos de forma igualitária.
"Tanto em termos
internacionais quanto nas sociedades industrializadas, a desigualdade
aumentou", afirma Andreas Wirsching, professor de história da Universidade
Ludwig Maximilian de Munique. A globalização econômica resultou em "muitos
vencedores, mas também muitos perdedores, isso é inegável", complementa.
As desvantagens da
globalização também incluem consequências sociais e ecológicas, pondera Cora
Jungbluth, economista e especialista sênior da fundação alemã Bertelsmann
Stiftung, com sede na cidade de Gütersloh.
Trabalhadores de países de
alta renda têm visto empregos migrarem para países onde o custo de produção é
menor, enquanto "empresas multinacionais têm terceirizado etapas de
produção mais poluentes para países em desenvolvimento e emergentes, contribuindo,
assim, para as questões ambientais", diz Jungbluth.
GLOBALIZAÇÃO EM RECUO DESDE A
CRISE DE 2008: Assim como a globalização reflete um processo crescente de
interdependência econômica, a desglobalização marca justamente o recuo da
integração econômica global. E há indícios de que isso está acontecendo há
algum tempo.
Medida que é chave na
globalização, a participação do comércio no Produto Interno Bruto (PIB) global
atingiu seu auge em 2008, antes do início da crise.
"A proporção média das
exportações em relação ao PIB em todo o mundo aumentou muito significativamente
nos anos 1990 e 2000. Entretanto, desde a crise financeira de 2008 e 2009,
essas medidas têm estagnado ou mesmo diminuído", explica Douglas Irwin,
professor de Economia na Universidade de Dartmouth, nos Estados Unidos.
Irwin e outros especialistas
observam que essa tendência tem ocorrido lado a lado com a ascensão do populismo
e de medidas econômicas protecionistas. Há, no entanto, outros fatores
importantes que têm freado a globalização.
ENTÃO VEIO A PANDEMIA: Em
termos econômicos, a crise do coronavírus tem contribuído para interrupções nas
cadeias de abastecimento. Não há como esquecer a consequente escassez, o
aumento de preços e também o armazenamento de produtos – aquele momento em que
você se deparou com o último rolo de papel higiênico.
Tais interrupções estimularam uma mudança fundamental na concepção dessas cadeias de abastecimento, explica Megan Greene, economista e membro sênior da Harvard Kennedy School, nos Estados Unidos.
"A pandemia mudou uma
tendência de produção 'just-in-time' (em que a produção, o transporte e a
compra são feitos de maneira regrada e pontual) para a manutenção de
estoques", diz Greene. Ela descreve esse novo sistema de contingência como
"cadeia de abastecimento global com planos de apoio", de modo que as
empresas não são abandonadas quando há rupturas na cadeia global de
abastecimento.
Dentro desse modelo com
planos de apoio, Jungbluth acrescenta que países e empresas têm considerado
reduzir as cadeias de abastecimento: "Talvez 'trazer de volta para casa',
com insumos e tecnologias-chave mais próximos de seus locais de produção",
algo que resulta em mais flexibilidade do lado de quem oferta. Essencialmente,
isso caracteriza um afastamento da globalização, com foco na eficiência e no
custo-benefício.
AGORA A GUERRA NA UCRÂNIA: Os
impactos da invasão russa à Ucrânia têm sido perceptíveis aos consumidores
muito devido às sanções impostas à Rússia, sobretudo nos setores de energia e
de produtos agrícolas.
"Há ausência de
importação de energia, que é necessária, uma vez que a Europa precisa de energia
fóssil da Rússia. E o mundo inteiro precisa de produtos agrícolas da Rússia e
da Ucrânia", afirma Thiess Petersen, economista e colega de Jungbluth na
Bertelsmann Stiftung.
A Rússia e a Ucrânia são
exportadores globais muito significativos de trigo e óleo de girassol, por
exemplo.
Irwin corrobora a tese de que
a interrupção das exportações devido à guerra e às sanções impostas à Rússia
têm levado a aumentos de preços.
"Temos visto os preços
das commodities subirem bastante como resultado da guerra, a exemplo de
produtos como trigo e petróleo (pelo menos inicialmente)", diz Irwin.
A consequência disso é o
aumento de preços para o consumidor final, o que, por sua vez, estimula a
inflação.
Por outro lado, as sanções
contra a Rússia estão isolando o país – que tem uma economia significativa – do
resto do mundo.
Economistas enxergam esse
cenário não apenas como a desintegração de mercados interconectados, mas sim o
desenrolar de um progresso que a globalização trouxe consigo.
A escassez e os altos preços
de alimentos básicos serão observados não apenas em países de alta renda, mas
também em nações em desenvolvimento e emergentes. Para países altamente
dependentes de importações de farinha e petróleo baratos, isso "pode até
levar à fome", acrescenta Jungbluth.
O FIM DA ERA GLOBALIZADA? A
crise de 2008, o protecionismo tarifário subsequente, a reestruturação da
cadeia de abastecimento devido à pandemia, a desintegração de mercados
interconectados por causa da guerra na Ucrânia, conclui Petersen, talvez
estejam nos levando "ao início de uma espécie de desglobalização".
Neste contexto, Greene
pondera que não há um índice para medir a globalização. E contesta a narrativa
atual, promovida a partir do início da pandemia, com relação a fatores como
onshoring (recolocação de negócios dentro das próprias fronteiras), nearshoring
(recolocação de negócios em países próximos) e regionalização da cadeia de
abastecimento. Essa narrativa, segundo Greene, não é sustentada por muitos
indicadores de globalização, a exemplo de pesquisas de dados.
"Na mais recente
pesquisa realizada pela Câmara de Comércio de Xangai, nenhuma empresa americana
afirmou que voltaria para operações onshore, ou seja, sair da China e voltar
para os Estados Unidos", aponta Greene.
Por outro lado, a economista
destaca que apesar de investimentos de longo prazo terem continuado de maneira
acelerada na China, investimentos de curto prazo ficaram mais evidentes a
partir da invasão russa na Ucrânia, o que também indica um ponto de virada.
"O auge da globalização
ficou para trás. Eu diria que estamos vendo a globalização progredir muito mais
lentamente do que antes, mas ainda não estamos no território da
desglobalização", afirma Greene.
ADMIRÁVEIS NOVOS BLOCOS: As sanções do Ocidente contra a Rússia e a fuga de capitais da China indicam uma tendência global, segundo Jungbluth: "Nos últimos anos, os países têm tentado reduzir as chamadas 'dependências críticas', o que também pode levar à desglobalização".
Já Irwin traça paralelos com
a era da Guerra Fria, quando "certos países que estavam politicamente
alinhados também se tornaram mais alinhados economicamente, e não tão
integrados com outros".
Jungbluth, Petersen e outros
economistas acreditam que o mundo caminha, atualmente, para dois blocos
econômicos geopolíticos distintos: um deles seria formado por países
democráticos, de economia de mercado (União Européia, Japão, Coréia do Sul,
Oceania, Américas do Norte e do Sul), e outro por estados autocráticos (China,
Rússia e seus parceiros comerciais mais importantes).
"O que temos visto é um
retorno à geopolítica, e essas tendências também levam à desglobalização, por
meio da tentativa de diminuir as dependências econômicas de países que têm
conceitos distintos", diz Jungbluth.
ESTAMOS, PORTANTO, NO LIMIAR DE UMA NOVA ERA? Conforme o historiador Andreas Wirsching, essa é uma discussão popular. "Você quase pode pensar nesses dois momentos juntos: a pandemia de 2020, e agora essa guerra em 2022. Tem-se a sensação, a impressão, como habitantes aqui e agora, que algo está fundamentalmente mudando. Mas como os vários fatores podem ser encarados juntos, isso só se tornará aparente no futuro".
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