É comum que, em economia, as perguntas mais básicas se
revelem as mais difíceis de responder.
A pergunta mais relevante da atualidade, recorrente entre os
economistas, mas com destaque renovado depois da publicação de "O Capital
no Século 21", de Thomas Piketty, é: qual a relação entre salários,
produtividade e desigualdade? Como a evolução dessa tríade ao longo do tempo,
para países diversos, pode elucidar as dúvidas sobre a sustentabilidade do
crescimento?
Como documentou Piketty em sua extensa obra, a desigualdade
de renda e riqueza no mundo aumentou muito nos últimos 30 anos. Nos EUA, vários
estudos têm tentado destrinchar os motivos para a elevação brutal da
desigualdade, sobretudo a proveniente das disparidades observadas na renda do
trabalho.
A estagnação salarial que sobreveio da crise de 2008, a
ausência de ganhos reais significativos ao longo dos últimos sete anos,
contribuiu para acentuar a crescente divergência entre os mais ricos e os mais
pobres, tornando-a mais evidente.
Ao analisar os dados para a economia americana, observa-se
algo surpreendente: os salários não apenas estão parados como não têm
acompanhado a produtividade ascendente da economia nas últimas décadas.
Ou seja, enquanto a produtividade sobe, o trabalhador
americano está deixando de desfrutar dos ganhos de renda do aumento da
eficiência produtiva.
DILEMA AMERICANO
Diz o recém-divulgado relatório da Commission for Inclusive
Prosperity: "À medida que o crescimento se desacelerou, grande parte das
economias desenvolvidas observou bifurcação entre o aumento da produtividade e
a elevação da renda do trabalho. Nos EUA, a lucratividade das empresas se
traduziu em maior renda para os acionistas e os altos executivos, mas não para
os empregados".
O dilema americano, além de ressuscitar a complexa questão
das relações entre desigualdade e crescimento econômico, tem gerado debate
aguerrido sobre o que fazer para combater a crescente disparidade da renda.
No seu mais recente discurso sobre o Estado da União, o
presidente Barack Obama delineou medidas para conter a escalada da
desigualdade, como o controvertido aumento dos impostos sobre os ganhos de
capital para que se possam reduzir os tributos que incidem sobre a classe média
e sobre os mais pobres.
Entre diversos economistas prevalece a noção de que, nos
EUA, a quebra da relação entre salários e produtividade explica o aumento da
desigualdade. Quando os trabalhadores são crescentemente excluídos dos ganhos
de eficiência embolsados por acionistas e executivos, elevando a desigualdade,
uma solução seria implantar política de redistribuição por meio de um tributo
sobre os ganhos de capital.
No Brasil, ocorre o oposto do que se observa nos EUA: há
pelo menos uma década, os salários crescem acima da produtividade. Nesse mesmo
período, a desigualdade caiu substancialmente.
Nos últimos anos, entretanto, há evidências de que a
desigualdade parou de cair, ou, ao menos, começou a se estabilizar em patamar
ainda demasiado alto.
Há quem credite aos salários que subiram acima da
produtividade boa parte da queda da desigualdade nos últimos anos: devido às
políticas de elevação da renda do trabalhador implantadas pelo governo
brasileiro -como as regras de indexação do salário mínimo-, houve
redistribuição da renda, dos empresários para a mão de obra.
Isso, entretanto, nada diz sobre a sustentabilidade da
redução da desigualdade. Como observa estudo recente do FMI, às vezes a
desigualdade é obstáculo ao crescimento econômico simplesmente porque motiva a
adoção de determinadas políticas redistributivas que têm efeito perverso sobre
a atividade.
Exemplo disso são políticas que estimulam o descolamento
entre salários e produtividade: rendimentos que crescem acima do valor que o
trabalhador é capaz de gerar acabam por onerar excessivamente as empresas, que
poderão repassar esse aumento de custos para os preços, demitir trabalhadores
ou deixar de investir.
A inflação corrói a renda dos mais pobres; o desemprego e a
queda do investimento reduzem o crescimento; sem crescimento, não há diminuição
contínua da desigualdade. Sobretudo se a regressividade da estrutura tributária
punir a classe média e os mais pobres, como ocorre no Brasil.
ATIVIDADE EMPERRADA
Eis, portanto, um dos desafios da tríade
salários-produtividade-desigualdade: quando os salários se descolam da
produtividade, seja para cima, como no Brasil, seja para baixo, como nos
Estados Unidos, a desigualdade pode aumentar.
Se a desigualdade aumentar, parte crescente da renda
produzida haverá de ser embolsada pelos mais ricos, em detrimento da classe
média e dos mais pobres -a desigualdade é processo que se retroalimenta, a não
ser que seja impedida por políticas redistributivas. Mas certas políticas
redistributivas podem emperrar o crescimento, sobretudo quando combinadas com a
má gestão da política macroeconômica. Isso é o que parece ter ocorrido, em
parte, no Brasil.
Como sair do torvelinho nefasto em que políticas
redistributivas emperram o crescimento e a falta de crescimento impede que a
desigualdade continue a cair de forma sustentada? Pergunta básica, resposta
difícil.
BRASIL – EDUCAÇÃO DE QUALIDADE
No caso do Brasil, talvez a forma mais óbvia de atacar o
problema da desigualdade não seja nova, tampouco desconhecida, embora requeira
muito esforço.
Relatório recente da
OCDE sobre a desigualdade diz que, para reduzi-la, é preciso que a população
tenha acesso a educação de qualidade -não basta ter crianças e adolescentes nas
escolas, é preciso que aprendam a ler, que desenvolvam o gosto pela leitura,
que tenham intimidade com os números e com as operações matemáticas. É preciso,
ainda, que desfrutem de rede de apoio, sobretudo quando o nível educacional de
pais e parentes for insuficiente para mantê-los engajados no aprendizado.
É preciso que tenham acesso aos serviços públicos básicos,
como saúde e saneamento. O relatório da OCDE afirma que a redução sistemática
da desigualdade só é possível se essas condições estiverem presentes e
beneficiarem os 40% mais pobres, ou seja, tanto as pessoas de baixa renda
quanto a classe média mais vulnerável.
O problema é que o Brasil pouco avançou nessas áreas nos
últimos 15 anos, não soube usar a bonança externa -a alta dos preços
internacionais das matérias-primas, os ingressos de recursos externos entre
2004 e 2010- para avançar.
A má gestão da
economia, hoje, nos obriga a adotar políticas de ajuste que haverão de adiar a
redução contínua da desigualdade e a ampliação do processo de inclusão social.
O adiamento inevitável já suscita críticas daqueles que, em vez de perceber os
erros do passado recente, preferem chamar de fracasso a correção de rumos que
acaba de se iniciar.
A tríade dos múltiplos dilemas ganha, pois, faceta
adicional: como fazer com que os órfãos da heterodoxia falida sintam-se
incluídos no debate sobre a redução da desigualdade? Eis um problema unicamente
brasileiro.
Afinal, nos EUA como em outros países, todos já
compreenderam que a redução da desigualdade é um valor universal, não pertence
aos partidos políticos ou aos intelectuais de ocasião. Fonte: Folha de São Paulo
- 08/03/2015 02h00- MONICA DE BOLLE é
economista, sócia-diretora da Galanto/MBB Consultoria e pesquisadora do
instituto Wilson Center
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