Tornou-se um lugar comum chamar o regime político existente entre 1964 e 1979 de “ditadura militar”. Trata-se de um exercício de memória, que se mantém graças a diferentes interesses, a hábitos adquiridos e à preguiça intelectual. O problema é que esta memória não contribui para a compreensão da história recente do país e da ditadura em particular.
É inútil esconder a participação de amplos segmentos da população no golpe que instaurou a ditadura, em 1964. É como tapar o sol com a peneira.
As marchas da Família com Deus e pela Liberdade mobilizaram dezenas de milhões de pessoas, de todas as classes sociais, contra o governo João Goulart. A primeira marcha realizou-se em São Paulo, em 19 de março de 1964, reunindo meio milhão de pessoas. Foi convocada em reação ao Comício pelas Reformas que teve lugar uma semana antes, no Rio de Janeiro, com 350 mil pessoas. Depois houve a Marcha da Vitória, para comemorar o triunfo do golpe, no Rio de Janeiro, em 2 de abril. Estiveram ali, no mínimo, a mesma quantidade de pessoas que em São Paulo. Sucederam-se marchas nas capitais dos estados e em cidades menores. Até setembro de 1964, marchou-se sem descanso. Mesmo descontada a tendência humana a aderir à Ordem, trata-se de um impressionante movimento de massas.
Nas marchas desaguaram sentimentos disseminados, entre os quais, e principalmente, o medo, um grande medo.
De que as gentes que marcharam tinham medo?
Tinham medo das anunciadas reformas, que prometiam acabar com o latifúndio e os capitais estrangeiros, conceder o voto aos analfabetos e aos soldados, proteger os assalariados e os inquilinos, mudar os padrões de ensino e aprendizado, expropriar o sistema bancário, estimular a cultura nacional. Se aplicadas, as reformas revolucionariam o país. Por isto entusiasmavam tanto. Mas também metiam medo. Iriam abalar tradições, questionar hierarquias de saber e de poder. E se o país mergulhasse no caos, na negação da religião? Viria o comunismo? O Brasil viraria uma grande Cuba? O espectro do comunismo. Para muitos, a palavra era associada à miséria, à destruição da família e dos valores éticos.
É preciso recuperar a atmosfera da época, os tempos da Guerra Fria. De um lado, os EUA e o chamado mundo livre, ocidental e cristão. De outro, a União Soviética e o mundo socialista. Não havia espaço para meios-termos. A luta do Bem contra o Mal. Para muitos, Jango era o Mal; a ditadura, se fosse o caso, um Bem.
No Brasil, estiveram com as Marchas a maioria dos partidos, lideranças empresariais, políticas e religiosas, e entidades da sociedade civil, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Conferência Nacional dos Bispos Brasileiros (CNBB), as direitas. A favor das reformas, uma parte ponderável de sindicatos de trabalhadores urbanos e rurais, alguns partidos, as esquerdas. Difícil dizer quem tinha a maioria. Mas é impossível não ver as multidões — civis — que apoiaram a instauração da ditadura.
A frente que apoiou o golpe era heterogênea. Muitos que dela tomaram parte queriam apenas uma intervenção rápida, brutal, mas rápida. Lideranças civis como Carlos Lacerda, Magalhães Pinto, Adhemar de Barros, Ulysses Guimarães, Juscelino Kubitschek, entre tantos outros, aceitavam que os militares fizessem o trabalho sujo de prender e cassar. Logo depois se retomaria o jogo politico, excluídas as forças de esquerda radicais.
Não foi isso que aconteceu. Para surpresa de muitos, os milicos vieram para ficar. E ficaram longo tempo. Assumiram um protagonismo inesperado. Houve cinco generais-presidentes. Ditadores. Eleitos indiretamente por congressos ameaçados, mas participativos. Os três poderes republicanos eram o Exército, a Marinha e a Aeronáutica. Os militares mandavam e desmandavam. Ocupavam postos no aparelho de segurança, nas empresas estatais e privadas. Choviam as verbas. Os soldos em alta e toda a sorte de mordomias e créditos. Nunca fora tão fácil “sacrificar-se pela Pátria”.
E os civis? O que fizeram? Apenas se encolheram? Reprimidos?
A resposta é positiva para os que se opuseram. Também aqui houve diferenças. Mas todos os oposicionistas — moderados ou radicais — sofreram o peso da repressão.
Entretanto, expressivos segmentos apoiaram a ditadura. Houve, é claro, ziguezagues, metamorfoses, ambivalências. Gente que apoiou do início ao fim. Outros aplaudiram a vitória e depois migraram para as oposições. Houve os que vaiaram ou aplaudiram, segundo as circunstâncias. A favor e contra. Sem falar nos que não eram contra nem a favor — muito pelo contrário.
Na história da ditadura, como sempre, a coisa não foi linear, sucedendo-se conjunturas mais e menos favoráveis. Houve um momento de apoio forte — entre 1969 e 1974. Paradoxalmente, os chamados anos de chumbo. Porque foram também, e ao mesmo tempo, anos de ouro para não poucos. O Brasil festejou então a conquista do tricampeonato mundial, em 1970, e os 150 anos de Independência. Quem se importava que as comemorações fossem regidas pela ditadura? É elucidativa a trajetória da Aliança Renovadora Nacional — a Arena, partido criado em 1965 para apoiar o regime. As lideranças civis aí presentes atestam a articulação dos civis no apoio à ditadura. Era “o maior partido do Ocidente”, um grande partido. Enquanto existiu, ganhou quase todas as eleições.
Também seria interessante pesquisar as grandes empresas estatais e privadas, os ministérios, as comissões e os conselhos de assessoramento, os cursos de pós-graduação, as universidades, as academias científicas e literárias, os meios de comunicação, a diplomacia, os tribunais. Estiveram ali, colaborando, eminentes personalidades, homens de Bem, alguns seriam mesmo tentados a dizer que estavam acima do Bem e do Mal.
Sem falar no mais triste: enquanto a tortura comia solta nas cadeias, como produto de uma política de Estado, o general Médici era ovacionado nos estádios.
Na segunda metade dos anos 1970, cresceu o movimento pela restauração do regime democrático. Em 1979, os Atos Institucionais foram, afinal, revogados. Deu-se início a um processo de transição democrática, que durou até 1988, quando uma nova Constituição foi aprovada por representantes eleitos. Entre 1979 e 1988, ainda não havia uma democracia constituída, mas já não existia uma ditadura.
Entretanto, a obsessão em caracterizar a ditadura como apenas militar levou, e leva até hoje, a marcar o ano de 1985 como o do fim da ditadura, porque ali se encerrou o mandato do último general-presidente. A ironia é que ele foi sucedido por um politico — José Sarney — que desde o início apoiou o regime, tornando-se ao longo do tempo um de seus principais dirigentes…civis.
Estender a ditadura até 1985 não seria uma incongruência? O adjetivo “militar” o requer.
Ora, desde 1979 o estado de exceção, que existe enquanto os governantes podem editar ou revogar as leis pelo exercício arbitrário de sua vontade, estava encerrado. E não foi preciso esperar 1985 para que não mais existissem presos políticos. Por outro lado, o Poder Judiciário recuperara a autonomia. Desde o início dos anos 1980, passou a haver pluralismo politico-partidário e sindical. Liberdade de expressão e de imprensa. Grandes movimentos puderam ocorrer livremente, como a Campanha das Diretas Já, mobilizando milhões de pessoas entre 1983-1984. Como sustentar que tudo isto acontecia no contexto de uma ditadura? Um equívoco?
Não, não se trata de esclarecer um equívoco. Mas de desvendar uma interessada memória e suas bases de sustentação.
São interessados na memória atual as lideranças e entidades civis que apoiaram a ditadura. Se ela foi “apenas” militar, todas elas passam para o campo das oposições. Desde sempre. Desaparecem os civis que se beneficiaram do regime ditatorial. Os que financiaram a máquina repressiva. Os que celebraram os atos de exceção. O mesmo se pode dizer dos segmentos sociais que, em algum momento, apoiaram a ditadura. E dos que defendem a ideia não demonstrada, mas assumida como verdade, de que a maioria das pessoas sempre fora — e foi — contra a ditadura.
Por essas razões é injusto dizer — outro lugar comum — que o povo não tem memória. Ao contrário, a história atual está saturada de memória. Seletiva e conveniente, como toda memória. No exercício desta absolve-se a sociedade de qualquer tipo de participação nesse triste — e sinistro — processo. Apagam-se as pontes existentes entre a ditadura e os passados próximo e distante, assim como os desdobramentos dela na atual democracia, emblematicamente traduzidos na decisão do Supremo Tribunal Federal em 2010, impedindo a revisão da Lei da Anistia. Varridos para debaixo do tapete os fundamentos sociais e históricos da construção da ditadura.
Enquanto tudo isso prevalecer, a História será uma simples refém da memória, e serão escassas as possibilidades de compreensão das complexas relações entre sociedade e ditadura. Fonte: O Globo - 31.03.2012 - Daniel Aarão Reis, professor de História Contemporânea da UFF
Comentário: O professor descreve de maneira precisa a participação da sociedade civil em apoio a ditadura militar. Mas ele esquece de analisar por que as organizações da esquerda, marxista e socialista levantaram a bandeira contra o regime em favor de uma falsa democracia se havia uma participação majoritária da sociedade civil em apoio ao regime militar?
Transcrevo o depoimento dado pelo professor ao Centro de Ensino Unificado de Brasília - CEUB.
No ano de 1970, o senhor foi preso e depois foi para a Argélia. O senhor se exilou ou foi forçado?
Nem me exilei, nem fui forçado. Fui beneficiado por uma ação revolucionária que capturou o embaixador alemão no Brasil, exigindo, em troca da vida dele, a libertação de 40 presos políticos, entre os quais, eu me encontrava. A ação aconteceu em junho de 1970 e o grupo todo foi para a Argélia, pois a ditadura não teve outra saída senão aceitar as exigências dos revolucionários.
Quando jovem, fui militante de uma organização revolucionária, a Dissidência Comunista da então Guanabara, a DI-GB, a mais charmosa organização revolucionária então existente, que, por ocasião da captura do embaixador estadonidense no Brasil, assumiu o nome de Movimento Revolucionário 8 de Outubro/MR-8. Abraçava na época a proposta de uma revolução catastrófica, a ser implementada por um processo de luta armada, visando estabelecer uma ditadura revolucionária, no padrão que era comum aos socialismos existentes (URSS, China e Cuba). De lá para cá, guardei a perspectiva geral de mudanças radicais no sistema capitalista, continuo me considerando socialista, mas sou adepto da idéia de que o socialismo deve ser almejado, e conquistado, como um processo de radicalização da democracia, através de métodos reformistas revolucionários. Não fiz mais, a rigor, do que recuperar os princípios e as propostas dos grandes revolucionários socialistas do século XIX.
No depoimento ele confessa a luta armada visando estabelecer uma ditadura revolucionária, no padrão que era comum aos socialismos existentes.
Mas critica os métodos do regime militar para obter informações dessas organizações, a tortura, prisões, etc. Mas essas organizações podiam matar, colocar bombas, capturar pessoas, em nome de uma causa, em que a maioria da sociedade não a apoiava.
O mais interessante ele continua socialista, utiliza a democracia para expor suas idéias e apóia movimentos radicais revolucionários para implantar o regime socialista, que não admite pluralismo político e livre pensamento. O método reformista revolucionário nada mais é do que uma assembléia constituinte popular que visa a implantação de uma partido único ou não admite partidos políticos.
A esquerda esquece de lembrar e principalmente os jornais atuais de informar aos mais jovens o genocídios ou holocaustro russos que foram iguais ou piores do que dos nazistas
Só para lembrar
1- genocídio de 1932-33, o regime de Josef Stalin matou sete milhões de ucranianos e enviou outros dois milhões para campos de concentração.
2- De 1929, quando o Gulag iniciou sua maior expansão, a 1953, quando Stalin morreu, as melhores estimativas indicam que cerca de 18 milhões de pessoas passaram por esse enorme sistema.
3- No decorrer da existência da URSS, surgiram pelo menos 476 complexos distintos de campos, consistindo em milhares de campos individuais, cada um dos quais tendo de algumas centenas a muitos milhares de pessoas.4 Os presos trabalhavam em quase todas as atividades imagináveis - derrubada e corte de árvores, transporte dessa madeira, mineração, construção civil, manufatura, agropecuária, projeto de aviões e peças de artilharia - e, na realidade, viviam num Estado dentro do Estado, quase numa civilização em separado.
A palavra Gulag é um acrônimo de Glavnoe Upravlenie Lagerei, ou Administração Central dos Campos. Com o tempo, passou também a indicar não só a administração dos campos de concentração, mas também o próprio sistema soviético de trabalho escravo, em todas as suas formas e variedades: campos de trabalhos forçados, campos punitivos, campos criminais e políticos, campos femininos, campos infantis, campos de trânsito. De modo ainda mais amplo, Gulag veio a significar todo o sistema repressivo soviético, o conjunto de procedimentos que os presos outrora denominaram "o moedor de carne": as prisões, os interrogatórios, o traslado em vagões de gado sem aquecimento, o trabalho forçado, a destruição de famílias, os anos de degredo, as mortes prematuras e desnecessárias.
Mas a ideologia também distorceu o modo pelo qual compreendemos a história da URSS e da Europa oriental.A partir dos anos 1930, uma parte pequena da esquerda ocidental deu duro para explicar e às vezes desculpar dos campos e o terror que os criou. Em 1936, quando milhões de lavradores soviéticos já trabalhavam nos campos ou viviam em degredo, os socialistas britânicos Sidney e Beatrice Webb publicaram um vasto levantamento sobre a URSS, o qual explicava, entre outras coisas, que "o oprimido camponês soviético vai aos poucos adquirindo a sensação de liberdade política".Na época dos grandes julgamentos de Moscou, enquanto Stalin arbitrariamente condenava aos campos milhares de membros inocentes do Partido, o dramaturgo Bertold Brecht disse ao filósofo Sidney Hook que, "quanto mais inocentes eles são, mais merecem morrer".
Não foi apenas a extrema esquerda, nem apenas os comunistas ocidentais, os que ficaram tentados a arranjar para os crimes de Stalin desculpas que nunca teriam apresentado para os de Hitler. Os ideais comunistas - justiça social, igualdade para todos - são simplesmente muito mais atraentes para a maioria das pessoas no Ocidente do que a defesa nazista do racismo e do triunfo do mais forte. Mesmo que na prática a ideologia comunista significasse algo muito diferente, era mais difícil aos descendentes intelectuais da Guerra de Independência dos Estados Unidos e da Revolução Francesa condenarem um sistema que, pelo menos, parecia semelhante ao deles próprios. Talvez isso ajude a explicar por que, desde o começo, relatos em primeira mão sobre o Gulag eram freqüentemente repudiados ou depreciados pelas mesmíssimas pessoas que jamais teriam colocado em dúvida o testemunho do Holocausto escrito por Primo Levi ou Eli Wiesel. Fonte: Gulag : Uma História dos Campos de Prisioneiros Soviéticos – autora Anne Applebaum
Veja o lema da esquerda, os ideais comunistas - justiça social, igualdade para todos, o que fizeram a Rússia e a Europa Oriental? Nada, apenas miséria, nivelamento da pobreza, trabalhos forçados, etc E esse lema continua persistindo no meio da esquerda atual, como nome sugestivo de democracia popular.
Como se diz o regime militar foi o lobo-mau e a esquerda continua sendo o chapeuzinho vermelho.