sábado, 10 de dezembro de 2016

O corpo do crime

A revista americana "Men's Health" elegeu o soldado Noah Galloway como "o corpo mais perfeito do mundo". Pormenor: Noah Galloway não tem um braço e não tem uma perna. Mas isso não impediu a revista de fazer capa com o veterano de guerra e coroá-lo com semelhante epíteto adônico.

Era George Orwell, creio, quem dizia que o mais difícil no mundo era enxergar a realidade que temos diante dos olhos. Orwell tinha razão. Porque Noah Galloway não tem "o corpo mais perfeito do mundo". Tem um corpo amputado, que só por covardia politicamente correta é possível classificar como "o mais perfeito do mundo".

Covardia e, pior que isso, uma desavergonhada falta de respeito pela deficiência física.

Ponto prévio: a deficiência física não tem nada de especial. É um fato moralmente neutro —como ser alto ou baixo, magro ou gordo, bonito ou feio.
Mas não é um fato esteticamente neutro: o Corcunda de Notre Dame não está no mesmo patamar de Gisele Bündchen. E afirmar que um corpo sem um braço e uma perna é "o mais perfeito do mundo" soa tão ridículo como coroar Dilma Rousseff como a mulher mais bela do Brasil.

O que parece "moderninho" e "despreconceituoso" resvala tristemente para o anedótico e para o insultuoso. E, ironia maior, demonstra um desconforto com a própria ideia de deficiência física que se procura "normalizar" desesperadamente (e pateticamente) com delírios hiperbólicos de sentido inverso.

Porque esse é o problema eterno do pensamento politicamente correto: para proteger a "sensibilidade" das minorias, as brigadas preferem a falsificação constante da realidade. Essa falsificação é sempre mais ofensiva do que qualquer discriminação real.
O pessoal da "Men's Health" deveria saber que há deficiências maiores do que não ter braços ou pernas. Não ter cabeça, por exemplo, é mil vezes pior. Fonte: Folha de São Paulo - 04/11/2014 - João Pereira Coutinho, escritor português

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