Do ponto de vista da opinião pública não importa, soldados se tornaram ‘heróis’, embora não tenham cometido nenhum ato heroico
No filme “A conquista da honra”, de Clint Eastwood, sobre a batalha de Iwo Jima, há uma cena admirável em que um ex-soldado, já velho, narra como ele e seus colegas hastearam a célebre bandeira que veio a figurar como símbolo da vitória americana. O filme se desdobra em torno da veracidade daquela foto, que retrata uma segunda bandeira, e não a original. Na verdade, os soldados que hastearam a primeira bandeira não foram os celebrizados, pois foram os “substitutos” que apareceram como os verdadeiros protagonistas, em um momento já tranquilo de batalha.
Do ponto de vista da opinião pública não importa, foram eles que se tornaram “heróis”, embora não tenham cometido nenhum ato heroico. A foto, quando publicada em todos os jornais da época, teve um efeito fulminante, suscitando uma adesão aos valores americanos e uma campanha que, então, se fortaleceu de arrecadação de fundos de guerra.
O veredito do velho soldado foi certeiro: “Naquele dia os EUA venceram a guerra". Mesmo se os fatos não se encaixavam na foto, nada disto contava, pois o mais relevante foi a construção da narrativa que, assim, se impôs. O velho soldado foi além e fez uma outra observação, igualmente certeira. Na Guerra do Vietnã, quando da publicação pelo mundo afora da foto do militar vietnamita que estourou os miolos de um guerrilheiro vietcongue, os EUA perderam a guerra.
Não interessa a narrativa militar de que os comunistas não venceram nenhuma grande batalha. O negociador vietnamita do tratado de paz, quando ouviu dos negociadores americanos que o Vietnam não teria ganhado nenhuma batalha, simplesmente respondeu que não era isto que importava. Eles venceram, sim, a batalha da opinião pública. Foi a sua narrativa que prevaleceu.
A Comissão da Verdade em nosso país, embora não tenha produzido nenhuma foto relevante, está procurando impor a sua narrativa do que foi o regime militar. O compromisso com a verdade desaparece em proveito de uma “estória”, que procura guardar distância da verdadeira “história”. A narrativa que procuram construir é a dos derrotados na luta armada que tentam, agora, impor a sua versão, como se a “verdade” pudesse ser um instrumento a ser manipulado sob a forma da mentira.
Os “combatentes” que tinham o objetivo de instalar no Brasil uma “ditadura do proletariado”, nome da época da ditadura comunista, se tornam os lutadores da liberdade, da democracia, apesar de não terem compromisso nenhum com esses princípios e valores. O comunismo era a sua meta. Marighella, um stalinista de estrita observância, se torna um “democrata”. Não há narrativa verídica que resista! É como se os brasileiros fossem idiotas!
Fiel a essa narrativa de cunho ideológico, a Comissão da (In)verdade editou a Resolução nº 2, restringindo o escopo de sua investigação aos atos cometidos pelos agentes de Estado, principalmente os militares. É como se os “guerrilheiros”, que assim se chamavam à época, fossem inocentes, meras vítimas, que não teriam cometido nenhum crime. Note-se que a lei que criou a Comissão da Verdade estava voltada, muito justamente, para uma investigação isenta de todos os envolvidos em crimes durante o regime militar. No momento em que há essa restrição e unilateralidade, é a verdade mesma que é deixada de lado. Qual credibilidade pode, então, ter uma comissão que prima pela parcialidade e que emprega a verdade somente enquanto termo que pode ser manipulado ideologicamente?
A narrativa assim construída tem como finalidade absolver a priori um dos lados e condenar o outro. A suspeita se lança contra todo o seu trabalho. Evitemos aqui qualquer mal-entendido, pois o desprezo da verdade faz com que os seus agentes fujam de toda crítica, como se fosse ela a parcial! É evidentemente necessário investigar a tortura, é da maior importância que um país tenha a memória de sua própria história.
Para isto, porém, é igualmente necessário que tenha isenção, a isenção de uma investigação verdadeira, que contemple todos os crimes cometidos pela esquerda armada, assim como exponha a sua concepção totalitária, de desprezo profundo pela democracia e pelas liberdades. Imaginem historiadores dentro de 30 anos, por exemplo, fazendo uma verdadeira pesquisa. Ficarão certamente embasbacados com o primarismo ideológico desta comissão. O seu trabalho de nada lhes valerá e terão de recorrer às fontes primárias.
A pressão que essa Comissão da (In)verdade está exercendo sobre as Forças Armadas tem a intenção explícita de intimidá-las, forçando-as a reconhecer a sua narrativa, a sua “verdadeira mentira histórica”. Se as Forças Armadas derem o seu aval, a sua narrativa se imporá e a esquerda armada derrotada sairá como a verdadeira vitoriosa. O caminho estaria, então, aberto para a revisão da Lei da Anistia, objetivo último dessa Comissão, embora fuja dos limites mesmos da lei que a instituiu.
Não esqueçamos que as Forças Armadas, ao bancarem a anistia, tendo se tornado guardiãs de todo o período democrático que se seguiu, fizeram todo um trabalho interno de depuração. A “linha dura” foi dizimada internamente e carreiras foram prematuramente abreviadas. Se houver uma revisão da Lei da Anistia, todo esse trabalho estará desautorizado. A Comissão da (In)verdade está dando razão aos que pensam que a “linha dura” tinha razão!
Note-se, por último, que a insistência desta comissão na defesa dos direitos humanos tem uma finalidade explícita, a de fugir das condições mesmas da Lei da Anistia, baseada numa suposta imprescritibilidade dos crimes de tortura. Estão simplesmente procurando uma brecha “legal” para agirem à margem da legalidade. Chama ainda mais atenção o fato de os “direitos humanos” serem cada vez mais instrumentalizados, como se eles servissem somente para construir a narrativa dos derrotados militarmente, porém vivos ideologicamente. Será que as pessoas vitimadas e assassinadas pela esquerda armada não eram “humanas”? Fonte: O Globo - 25/08/2014 -Denis Lerrer Rosenfield, professor de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
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