Os primeiros que aparecem em Cambalache, um aterro sanitário crescente nos limites desta cidade, são os urubus. Centenas pairam pelo véu de fumaça que sobe do refugo a cada raiar do dia.
As aves carniceiras brigam com crianças e seus pais pelos pedaços de carne descartados pelos moradores mais afortunados da Ciudad Guayana. Abaixo dos urubus, os trabalhadores conversam entre si em warao, uma língua indígena falada no delta próximo, onde o Orinoco, um dos rios mais poderosos do mundo, encontra o Atlântico.
“Tenho fome, e meus filhos têm fome”, disse Raisa Beria, 25, índia warao que veio até aqui em busca de vestimentas e alimento. Em uma manhã neste mês, Beria encontrou uma galinha apodrecendo ainda no pacote da cadeia de lanchonetes venezuelana Arturo. Sua filha, Eugenia, 4, pegou uma asa da galinha. As moscas cercaram sua pequenina mão. “É assim que a gente vive”, disse sua mãe, Beria, em espanhol com sotaque.
Essas cenas assustadoras de miséria deveriam estar sumindo na história da Venezuela. Nos números que entrega à ONU, o país diz estar competindo com o historicamente igualitário Uruguai para o primeiro lugar em melhor distribuição de renda da América Latina, como resultado dos programas sociais financiados pelo petróleo.
Além disso, o presidente Hugo Chávez tornou o fortalecimento de grupos indígenas um pilar de seu governo de 12 anos. Ele financiou projetos de saúde para os índios, uma universidade indígena e um novo ministério para povos indígenas, cuja população está estimada em meio milhão na Venezuela.
As autoridades disseram neste ano que as tribos venezuelanas tinham razões para celebrar o “fim da exclusão” porque “agora reinam a igualdade, os direitos e a paz”. Contudo, se a miséria de Cambalache servir de indicação, alguns povos indígenas ainda enfrentam uma realidade mais atormentadora que seu governo sugere.
Refletindo a complexidade política da Venezuela, a maior parte dos waraos entrevistados expressaram lealdade a Chavez, mesmo enquanto comiam o lixo da Ciudad Guayana. Os entrevistados citaram o acesso a alguns programas sociais, inclusive projetos de alfabetização, para justificar sua fidelidade, enquanto outros professaram sentimentos mais viscerais, inclusive o orgulho por Chavez ter afirmado que sua própria avó era uma índia pume.
Independentemente da política, cerca de 300 waraos agora moram em tendas e barracos nos limites de Cambalache, perto das margens do Orinoco. A maior parte migrou do Estado empobrecido do Delta Amacuro, de florestas e mangues que abriga milhares de waraos.
Acadêmicos que estudam o povo warao dizem que chegaram a esta região no início dos anos 90, quando uma epidemia de cólera matou cerca de 500 pessoas no delta. Muitos waraos moram em palafitas e têm uma dieta a base de um tubérculo chamado ure. No delta, a perfuração de petróleo e a demanda por azeite de dendê, colhido das palmeiras, colocam mais pressão sobre as áreas dos índios warao. Ciudad Guayana, uma cidade industrial que, ao estilo de Brasília, foi desenhada por planejadores de Harvard e MIT nos anos 60, absorveu várias comunidades warao que fugiam da pobreza.
Alguns waraos caminham pelas amplas avenidas pedindo comida. Outros vendem objetos como braceletes nas esquinas. Outros subsistem em Cambalache, localizado a minutos de butiques de luxo e a sede de fábricas do governo adornadas com fotos imensas de Chávez. Em Cambalache, os waraos catam comida, alumínio, cobre e roupas, em uma luta diária que descrevem como um pesadelo hobbesiano.
Eles dizem que bandidos espreitam quem cata e vende metais para os intermediários. Algumas mulheres waraos vendem seus corpos para pessoas de fora, contribuindo para infecções de HIV na comunidade. Alguns perecem debaixo dos caminhões de compactação de lixo, como um menino de 14 anos que foi esmagado em julho.
Diante dessas condições, os waraos se adaptam. Adultos carregam facas na cintura. Eles não se afetam com o fedor de Cambalache ou com a fumaça das fogueiras diárias, que entopem as vias aéreas dos que trabalham no lixão.
Bandos de crianças waraos filtram as pilhas de lixo. Em uma recente manhã enevoada, uma menina tirou do lixo uma garrafa meio consumida de “frescolita”, um refrigerante venezuelano, e matou sua sede com o que estava dentro. Christian Sorhaug, antropólogo norueguês que morou com os waraos, fazendo trabalho de campo durante a última década, disse: “Cambalache é o pior lugar que eu já vi na minha vida”.
Famílias inteiras chegam ao nascer do sol a cada dia, atrás dos caminhões que trazem carregamentos frescos de lixo. Um caminhão neste mês tinha pintado nas laterais o nome de Jose Ramon Lopez, prefeito de Ciudad Guayana, e as palavras “Plano Socialista de Embelezamento”. As autoridades sabem dos waraos que moram em Cambalache, e suas condições de vida são uma questão altamente delicada. O escritório do prefeito, que se refere à área onde vivem os waraos como UD-500, disse em uma declaração que planejava construir mais casas para as famílias indígenas.
Líderes waraos e pesquisadores da Universidade de Califórnia em Berkeley informaram às autoridades federais de saúde em 2008 que um surto de uma doença parecida com raiva matara dezenas de pessoas no delta do Amacuro, e as autoridades se recusaram a vê-los, atacaram-nos em seus discursos, tentaram desacreditar suas descobertas e abriram uma investigação criminal contra seu relatório. Um médico cubano contratado pelo governo fornece atendimento básico aos moradores, encaminhando aqueles com doenças sérias como tuberculose e sarampo para os hospitais públicos.
Wilhelmus van Zeeland, 69, padre holandês que trabalha com os waraos em Cambalache, disse que programas de saúde tinham ajudado a diminuir as mortes por doenças relacionadas ao saneamento desde sua chegada, em 1999. A Corporacion Venezolana de Guayana, um conglomerado industrial estatal, recentemente doou 15 casas para os waraos.
Pedro La Rosa, 42, que é considerado líder dos waraos em Cambalache, disse que precisavam de pelo menos mais 30 casas. “Nunca vamos deixar este lugar”, disse ele em entrevista. “Ocupamos esta terra e fizemos nossa vida nesse lixo e é aqui que reside nosso futuro”. Os waraos continuam chegando a Cambalache, dividindo-se entre colonos que ficam e os que vêm por algumas semanas para catar coisas e vender no delta. Algumas vezes é difícil dizer quem pertence a qual grupo.
Enquanto a fumaça das fogueiras em Cambalache sopravam pelo Orinoco, Ismênia La Rosa, 41 -que não é parente de Pedro La Rosa- recebeu um visitante em sua tenda, no grupo dos chamados “flutuantes”, por sua vontade de voltar para as florestas de mangues no delta. Ela segurava seu filho recém nascido de 6 dias, ainda sem nome. Era seu quinto filho, disse ela com uma expressão exausta que não revelava nem alegria nem tristeza. “Meu filho nasceu em Camblache”, disse ela, “acho que é aqui que ficará”.Fonte: UOL Noticias - 21/09/2010
Comentário: E o socialismo bolivariano não está preocupado com as comunidade indígena?