Pelé é o único que foi três vezes campeão do mundo
Caros pentacampeões,
Certa vez, num discurso de
despedida de um burocrata de plantão aqui na ONU, o embaixador do Vietnã pediu
a palavra para fazer uma homenagem à pessoa que estava deixando o cargo. Entre
anedotas e agradecimentos, ele lembrou de um provérbio vietnamita:
Quando você for comer uma
fruta, nunca se esqueça de quem a plantou".
Pelé morreu e, em sua
despedida, nenhum de vocês conseguiu chegar até Santos. Alguns trouxeram
argumentos logísticos. Outros, apenas o silêncio.
Fizeram falta.
Os ritos de passagem dão significado,
inclusive para o incompreensível. Eles conservam o sentido coletivo daquela
vida. Ritos, em si, não geram a coesão de uma sociedade. Mas o sentimento
produzido naquele ato pode ajudar a desenhar a silhueta daquele povo. O luto
não é sobre a morte. Mas sobre a vida.
Não escrevo essa carta a
vocês para cobrar nenhuma postura moral e muito menos uma explicação. Quem sou
eu para julgar a forma pela qual vocês decidem viver, quais os destinos das
viagens de seus jatos particulares ou se devem ou não cobrar cachê por cada vez
que são fotografados em um batizado, casamento ou churrasco.
Essa carta é apenas uma
reflexão sobre uma poderosa palavra: gratidão, um conceito que estou convencido
de que pode ter um papel transformador num país que precisa se encontrar.
Eu tenho certeza que vocês
sabem que Pelé foi quem abriu as portas para suas carreiras brilhantes. Não
estou aqui desmerecendo o esforço e o suor de cada um de vocês. Alguns saíram
de condições precárias e venceram, desafiando o destino que parecia querer se
impor sobre suas famílias.
Ainda assim, não há como
ignorar que, em cada chute de vocês, cada drible e cada vez que usaram a camisa
amarela,
Pelé estava presente. Seja na
expectativa que o mundo tinha sobre vocês, moldada a partir das cenas que o
eterno camisa 10 nos deixou. Seja na esperança de empresários de que cada um de
vocês fosse o novo Pelé.
Mas onde estavam vocês?
Vejo a ausência de tantos
jogadores e de tantos outros que se beneficiaram das conquistas do Rei do
Futebol em seu funeral como um sintoma do mal-estar de uma sociedade que tem
sérias dificuldades para se reconhecer como um coletivo, de assumir o passado
como parte de nosso presente.
Na encruzilhada em que
vivemos, acredito que é fundamental recuperar esse significado e rejeitar a
disseminação de lemas como "não sou coveiro". Vocês tiveram uma linda
ocasião para mostrar ao mundo e aos nossos filhos que nós, sim, somos mais que
o nosso presente e a nossa individualidade.
Vejo como meu filho promove
uma verdadeira cerimônia em casa para pendurar no local mais nobre de seu
quarto - que é o resumo de seu mundo - um quadro com o autógrafo de vocês.
Nesse autógrafo, portanto, não vem apenas a imagem do gol. Confesso que tive
vontade de convencê-lo a retirar da parede aqueles quadros. Mas decidi que ele
tem direito a sonhar. E sei que ele logo irá torcer com consciência.
E, para isso, precisamos
reconhecer aqueles que são referências de nossa identidade, o que representamos
como valores e de que modo queremos desenhar o futuro onde nossos filhos
crescerão.
Somos, como disse Max Weber,
um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu. Mas se não
tecermos, quem somos?
Precisamos resgatar o ato do
agradecimento e da homenagem, desmontado por quatro anos de profanação da alma.
Precisamos agradecer a Pelé e seus gols, a João Gilberto e Aldir Blanc e seus
acordes, a Marielle e sua coragem, a Isabel Salgado e sua indignação, a Gal
Costa e sua insurreição.
Na reconstrução do Brasil, os
tijolos que precisamos usar terão de ser feitos de afeto, gratidão e humildade.
Caso contrário, estaremos cultivando apenas mitos com pés de barro.
Viva Pelé!
UOL - 08/01/2023 - Colunista Jamil Chade