Mais de 200 homens
contratados para trabalhar na colheita de uva foram resgatados de um alojamento
em Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha, onde eram submetidos a "condições
degradantes" e trabalho análogo à escravidão.
Os órgãos que participaram da
operação realizada em 22 de fevereiro – Ministério do Trabalho e Emprego (MTE),
Ministério Público do Trabalho (MPT) e as polícias Federal (PF) e Rodoviária
Federal (PRF) – afirmaram que os trabalhadores teriam sido enganados após
receberem promessa de emprego temporário, salário de 4 mil reais e, ainda,
alojamento e refeições pagas.
A operação foi realizada após
três trabalhadores procurarem a PRF, em Caxias do Sul, afirmando que haviam
fugido de um alojamento – no Bairro Borgo, a cerca de 15 quilômetros dos
vinhedos de Bento Gonçalves – em que eram mantidos contra a vontade. Os
trabalhadores resgatados chegaram a ser alojados no ginásio Darcy Pozza, em
Bento Gonçalves, até que pudessem voltar para casa.
Os 207 homens foram recrutados na Bahia pela empresa Fênix Serviços Administrativos e Apoio à Gestão de Saúde LTDA, que prestava serviços para as vinícolas Aurora, Cooperativa Garibaldi e Salton – algumas das mais importantes produtoras da região (veja as notas das empresas no final do texto). As produtoras rurais dizem que não tinham conhecimento sobre a situação relatada pelos trabalhadores.
AGRESSÕES FÍSICAS E
PSICOLÓGICAS
Nos depoimentos, os
trabalhadores relataram episódios de violência, tais como surras com cabo de
vassoura, mordidas, choques elétricos e ataques com spray de pimenta, além de
más condições de trabalho e de alojamento. Eles denunciaram ainda práticas como
vales, multas e descontos nos salários, o que levou o MTE e o MPT a
considerarem a situação como um regime de trabalho análogo à escravidão.
Os homens trabalhavam na
colheita de uva de domingo a sexta, das 5h às 20h e sem pausas – apesar de
serem forçados a assinar no ponto que folgavam também aos domingos. Eles
começaram a trabalhar no início de fevereiro, porém, surpreendidos com as
péssimas condições de trabalho, tentaram ir embora do Rio Grande do Sul, mas
chegaram a ser ameaçados e espancados.
Um dos trabalhadores afirmou,
em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, que o combinado era receber R$ 4 mil
após 45 dias. Porém, eram abatidos do montante descontos que não foram previamente
combinados. Assim, ele disse que percebeu que estava sendo explorado.
Outro trabalhador relatou
que, ao chegar no Rio Grande do Sul, soube que perderia a passagem de volta
caso faltasse a um dia de trabalho. Além disso, o alojamento – que deveria estar
incluso – seria descontado em folha no final do contrato. Por isso, afirma ele,
a situação fazia com que os homens continuassem trabalhando mesmo se estivessem
doentes.
Os trabalhadores disseram que
recebiam comida estragada dos representantes da Fênix, que só podiam comprar
produtos em um mercadinho perto do alojamento, com preços superfaturados, e que
o valor gasto era descontado do salário. Por isso, os trabalhadores acabavam o
mês devendo dinheiro para a empresa, pois o consumo superava o valor do
salário.
Eles contaram ainda que não
podiam sair do local e que, se quisessem, teriam que pagar a suposta
"dívida". Além disso, os empregadores ameaçavam seus familiares.
VINÍCOLAS PODEM SER
RESPONSABILIZADAS?
As vinícolas Aurora,
Cooperativa Garibaldi e Salton contrataram a Fênix, que oferecia mão de obra.
Porém, as produtoras rurais – que afirmaram desconhecer as irregularidades e
que sempre atuaram dentro da lei – podem ser responsabilizadas, segundo Vanius
Corte, gerente regional do MTE em Caxias do Sul, em entrevista ao portal G1.
"As pessoas que tomaram
esse serviço, as pessoas que foram beneficiadas por esse serviço, também podem
ser responsabilizadas. Chamamos isso de responsabilidade subsidiária. Primeiro,
o empregador tem a responsabilidade", afirmou Corte.
"Se ele não pagar, as
pessoas que trabalharam em determinada vinícola, que prestaram o serviço lá,
podem cobrar, e nós vamos chegar nesse ponto, dessa vinícola que se beneficiou
desse trabalho", acrescentou.
Para o gerente regional do
MTE em Caxias do Sul, não basta as empresas contratarem alguém. "Tu tens
que saber quem tu estás contratando, tu tens que ter essa responsabilidade de
examinar se ele oferece as condições [adequadas] e os direitos [legais]",
afirmou.
RESPONSÁVEL PELA EMPRESA FOI
PRESO, MAS PAGOU FIANÇA
De acordo com o portal G1, a
responsável pelo alojamento era a empresa Fênix, administrada por Pedro Augusto
de Oliveira Santana, de 45 anos. Ele chegou a ser preso, mas pagou fiança no
valor de R$ 40 mil e responderá pelo crime em liberdade.
Por meio de nota, o advogado
Rafael Dorneles da Silva afirmou que "a empregadora Fênix Serviços
Administrativos e Apoio à Gestão de Saúde LTDA e seus administradores esclarecem
que os graves fatos relatados pela fiscalização do trabalho serão esclarecidos
em tempo oportuno, no decorrer do processo judicial".
Segundo o MTE, a Fênix foi
criada em janeiro de 2019 e está em nome de uma mulher – e Santana trabalhava
como administrador. O MTE afirmou que Santana atua em Bento Gonçalves há cerca
de 10 anos e sempre contratava pessoas, inclusive de outros estados, para o
trabalho nas colheitas de frutas, em aviários e de carga e descarga.
Santana tinha uma empresa que
foi criada em 2012 para prestar serviços – a Oliveira & Santana –, que
chegou a ter 206 funcionários, porém, fechou suas portas em 2019. Entre 2015 e
2023, a firma foi autuada dez vezes por irregularidades trabalhistas.
Inclusive, os alojamentos onde os trabalhadores ficavam também foram
interditados. Apesar disso, nenhuma situação análoga à escravidão foi flagrada.
A Fênix não havia sido fiscalizada pelo MPT até a realização da operação de
resgate.
TRABALHADORES JÁ RETORNARAM
PARA SUAS CASAS
Dos 207 trabalhadores resgatados,
194 partiram de ônibus do Rio Grande do Sul para a Bahia no início do sábado
(25/02). Outros quatro trabalhadores preferiram ficar em Bento Gonçalves; e
nove gaúchos retornarão de ônibus às suas cidades nos próximos dias. Os custos
de transporte já foram repassados à Fênix Serviços Administrativos e Apoio à
Gestão de Saúde LTDA.
Segundo a Secretaria de
Justiça, Cidadania e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul, o governo da Bahia
afirmou que esperará pelos trabalhadores com equipes de assistência social em
cada um dos municípios de chegada. Os nomes das cidades, segundo o portal G1,
não são divulgados por questões de segurança.
COMO FICARÃO OS DIREITOS DOS
TRABALHADORES?
A empresa fechou um acordo –
mediado pelo MPT – com os trabalhadores que foram encontrados em condições
análogas à escravidão. Cada um deles recebeu R$ 500 para fazer a viagem para
suas casas. De acordo com o MPT, foi estabelecido um Termo de Ajustamento de
Conduta (TAC) em que a empresa deverá comprovar os pagamentos sob pena de ajuizamento
de ação civil pública por danos morais coletivos, além de multa correspondente
a 30% do valor devido.
Estima-se até agora que o
cálculo total das verbas rescisórias ultrapasse R$ 1 milhão. De acordo com o
TAC, os valores desembolsados pela empresa contratante não quitam os contratos
de trabalho, além de não significarem renúncia de direitos individuais
trabalhistas, que poderão ser reivindicados pelos trabalhadores.
CRIAÇÃO DE FORÇA-TAREFA DE
FISCALIZAÇÃO
Após uma reunião nesta
terça-feira (28/02), o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, anunciou
a criação de uma força-tarefa para fiscalizar a contratação de pessoas e
combater situações de trabalho análogo à escravidão na Serra Gaúcha. Ele não
anunciou um prazo para o início da ação, mas defendeu também que ocorram
responsabilizações.
"Entre as ações
determinadas está uma força-tarefa do governo do estado em fiscalização com
apoio e relacionamento com a Comissão Estadual de Erradicação do Trabalho
Escravo [...] para amplificar a capacidade de fiscalização, especialmente
nessas atividades que demandam a expansão de mão de obra tão rápida como é o
processo das colheitas", frisou.
O governador afirmou que a
Serra Gaúcha tem cerca de 20 mil propriedades rurais de pequeno porte, e que
uma população flutuante de mais de 100 mil pessoas trabalha nas colheitas.
"Queremos desenvolver forças-tarefas de fiscalização para garantir que
nessas atividades tenhamos especial enfoque para garantir que as condições de
trabalho dessas pessoas sejam adequadas, dignas e correspondentes à
legislação", concluiu.
O QUE DIZEM AS VINÍCOLAS E O
EMPRESÁRIO?
"Em respeito aos seus
associados, colaboradores, clientes, imprensa e parceiros, a Vinícola Aurora
vem a público para reforçar que não compactua com qualquer espécie de atividade
considerada, legalmente, como análoga à escravidão e se solidariza com os
trabalhadores contratados pela terceirizada Oliveira & Santana.
As vítimas são funcionários
da Oliveira & Santana, empresa que prestava serviços às vinícolas, produtores
rurais e frigoríficos da região.
A Aurora já se colocou à
disposição das autoridades para quaisquer esclarecimentos e está prestando
apoio às vítimas. A companhia também está trabalhando em conjunto com o
Ministério Público Federal e com o Ministério do Trabalho para equalizar a
situação em busca de reparo aos trabalhadores da Oliveira & Santana.
A vinícola está tomando as
medidas cabíveis e reitera seu compromisso com todos os direitos humanos e
trabalhistas, assim como sempre fez em seus 92 anos. Ratifica ainda que
permanece cumprindo com suas obrigações legais e com a sua responsabilidade
também perante ao valor rescisório a cada trabalhador contratado pela Oliveira
& Santana.
A Aurora conta com 540
funcionários, todos devidamente registrados e obedecendo a legislação
trabalhista. Porém, na safra da uva, dentro de um período de cerca de 60 dias,
entre janeiro e março, a empresa depende de um grande número de trabalhadores,
se fazendo necessária a contração temporária para o setor de carga e descarga
da fruta, devido à escassez de mão de obra na região.
Quanto à empresa
terceirizada, cabe esclarecer que a Aurora pagava à Oliveira & Santana um
valor acima de R$ 6,5 mil/mês por trabalhador, acrescidos de eventuais horas
extras prestadas. A terceirizada era a responsável pelo pagamento e pelos
devidos descontos tributários instituídos em lei. A Aurora também exigia os
contratos de trabalhos da equipe que era alocada na empresa.
Todo e qualquer prestador de
serviço da Aurora, da mesma forma que os funcionários, recebe alimentação de
qualidade durante o turno de trabalho, como café da manhã, almoço e janta, sem
distinções.
A vinícola também oferecia
condições dignas de trabalho no horário de expediente e os gestores
responsáveis desconheciam a moradia desumana em que os safristas eram
acomodados pela Oliveira & Santana após o período de trabalho.
Por fim, ratificando seu
compromisso social, a Aurora se compromete em reforçar sua política de
contratações e revisar os procedimentos quanto à terceiros para que casos
isolados como este nunca mais voltem a acontecer."
SALTON:
"A Família Salton
repudia veementemente e não compactua com nenhum tipo de trabalho sob condições
precárias, análogas à escravidão. A empresa e todos os seus representantes
estão solidários a todos os trabalhadores e suas famílias, que foram tratados
de forma desumana e cruel por um prestador de serviço contratado.
Reforçamos que todas as
informações foram verificadas antes da contratação do fornecedor. Entretanto,
trata-se de incidente isolado e a Família Salton já está tomando medidas cabíveis
frente ao tema, além de ser colocar à disposição dos órgãos competentes para
colaborar com o processo.
A empresa salienta que já
está trabalhando para intensificar os controles de contratação, prevendo
medidas mais austeras em todo e qualquer contrato de serviços terceirizados.
Prevê ainda a associação e parcerias com órgãos e entidades do setor para
melhorar a fiscalização de práticas trabalhistas.
Com um legado de 112 anos, a
Família Salton é referência em sustentabilidade e signatária do Pacto Global da
ONU e realiza projetos que refletem diretamente a responsabilidade social da
empresa e seu compromisso como empresa cidadã".
GARIBALDI:
"A Cooperativa Vinícola
Garibaldi protagoniza uma história de 92 anos de atuação, credibilidade e
compromisso com a valorização das pessoas. Esse ideal está intrínseco no
propósito cooperativista que deu origem ao negócio e, principalmente, segue
norteando diariamente todas as práticas da Cooperativa Vinícola Garibaldi,
inclusive na sua relação com os mais de 450 associados, pequenos produtores de
agricultura familiar, e dos mais de 200 colaboradores diretos.
Alinhada com esses valores, a
Cooperativa Vinícola Garibaldi repudia qualquer prática que afronte o respeito
ao ser humano ou comprometa sua integridade. Isso está explicitado em seu
Código de Cultura, que contempla, ainda, um canal de ética (para denúncias),
disponível em vários meios de comunicação da Cooperativa e amplamente divulgado
entre as partes interessadas. Encontrado também no site – www.vinicolagaribaldi.com.br
Com surpresa e indignação, a
vinícola recebeu as denúncias de práticas análogas à escravidão exercidas por
uma empresa terceirizada, contratada para suprir a demanda pontual e específica
do descarregamento de caminhões no período da safra da uva. Prontamente, a
Cooperativa Vinícola Garibaldi encerrou o contrato de prestação de serviço e
colocou-se integralmente à disposição das autoridades competentes para
colaborar de todas as formas com as investigações necessárias. Assim pretende
seguir até a completa elucidação dos fatos, confiando no exercício da justiça e
no respeito à responsabilidade social.
Da mesma forma, presta
solidariedade aos vitimados pelo ocorrido e a seus familiares, reiterando que de
forma alguma compactua com as práticas denunciadas e jamais aceitará tais
conduções em suas relações de trabalho.
Importante salientar que,
nesses menos de 30 dias de contrato prestando serviço na Cooperativa, o
tratamento foi igualitário aos funcionários diretos, atendendo a todas as
normas de convívio valorizadas pela Garibaldi, dentre as quais os horários,
treinamento, segurança, refeições, etc., além do atendimento a todas as
questões legais pertinentes.
Com a transparência que
sempre conduziu suas relações, a Cooperativa Vinícola Garibaldi permanece à
disposição da sociedade e das autoridades envolvidas no caso."
NOTA DO EMPRESÁRIO:
"Diante dos fatos
noticiados em relação a operação de combate ao trabalho análogo à escravidão
ocorrida na última quinta-feira, em Bento Gonçalves, a empregadora Fênix
Serviços Administrativos e Apoio a Gestão de Saúde LTDA e seus administradores
esclarecem que os graves fatos relatados pela fiscalização do trabalho serão
esclarecidos em tempo oportuno, no decorrer do processo judicial.
Cabe mencionar que o empresário
envolvido nas acusações é um empreendedor de atuação reconhecida e respeitada,
não compactuando com qualquer desrespeito aos colaboradores e aos direitos a
eles inerentes.
Além disso, é importante
ressaltar que qualquer conclusão neste momento é meramente especulativa e
temerária, uma vez que os fatos e as responsabilidades devem ser esclarecidas
em juízo.
Manifestamos total respeito
às instituições e nos colocamos à disposição da justiça para todos os esclarecimentos
necessários, colaborando no que for necessário para o restabelecimento da
verdade e principalmente do bem estar de todos os envolvidos.
Por fim, informamos que os
trabalhadores estão recebendo todo o auxílio necessário para que esta situação
não traga maiores prejuízos aos mesmos."Fonte: Deutsche Welle – 02.03.2023
O QUE DIZ A LEI
Conforme o Código Penal, o trabalho análogo à escravidão é caracterizado pela submissão de alguém a trabalho forçado ou a jornadas exaustivas, sujeição a condições degradantes ou restrição do ir e vir em razão da dívida com o empregador, por meio da retenção dos documentos do trabalhador ou cerceamento do uso de meios de transporte, por exemplo. Também é passível de punição quem mantém vigilância ostensiva no local de trabalho.