O mercado editorial brasileiro encolheu mais de 20% em uma
década, com perdas que somam R$ 1,4 bilhão. Até gigantes do setor estão
sucumbindo. Mas o que de fato está afetando o negócio do livro no país?
Em outubro de 2016, a editora Martins Fontes decidiu
interromper o fornecimento de livros para um de seus principais revendedores, a
Livraria Cultura. Tratava-se de um movimento ousado, dado o peso dessa rede no
mercado. Porém, o risco assumido pela empresa, motivado por uma dívida de 500
mil reais, acabou por salvá-la de um colapso que assombra o setor editorial
brasileiro. Hoje, o passivo da Cultura com apenas uma editora, a Companhia das
Letras, alcança os 18 milhões de reais.
Grandes redes do setor livreiro, Cultura e Saraiva entraram
em recuperação judicial em dezembro do ano passado e fecharam dezenas das
megalojas espalhadas em capitais de todo o Brasil. O impacto sobre as editoras
é profundo, principalmente porque o mercado opera, há duas décadas, no modelo
de consignação. Ou seja, as livrarias só repassam às editoras o pagamento pelos
livros fornecidos após a revenda ao público – com prazos de até um ano.
A derrocada dessas empresas gerou surpresa entre o público,
mas parece ter sido pavimentada ao longo dos últimos anos, confirmando a
impressão de que as livrarias estão desaparecendo das ruas e centros comerciais
do país. Evandro Martins Fontes, sócio da editora e livraria que leva o nome da
família, além de criticar o modelo de expansão adotado pelas duas redes, aponta
uma conivência das grandes editoras, que não reagiram ao acúmulo crescente de
dívidas das quais eram credoras.
"Essas redes optaram pelo modelo das megalojas, que
envolvem altos custos de operação, inclusive os aluguéis. A Cultura só tinha
uma loja em São Paulo, que era referência, mas começou a expandir em 2014. Já
era um momento delicado, pois a venda digital se expandia. Com a crise, elas
sofreram um forte baque, e esse modelo se tornou ainda mais insustentável. Elas
foram vítimas da ganância”, diz o empresário.
"O negócio do livro sempre foi de margens pequenas, mas
todos pudemos crescer aos poucos, honrando nossos compromissos. Por ser uma
empresa de capital aberto, a Saraiva tinha que divulgar os balanços
financeiros. Houve um ano em que o faturamento anual deles ultrapassou 1 bilhão
de reais, mas o lucro foi de apenas 3 milhões. Eu faturo muito menos e tenho
margem de lucro igual ou maior”, explica.
Embora seja possível apontar eventuais escolhas equivocadas
nas estratégias adotadas pelas empresas que abriram pedidos de recuperação
judicial no fim do ano passado, o negócio do livro já vem sentindo, há alguns
anos, os efeitos de mudanças tecnológicas que afetam diversas atividades
econômicas. Mesmo que os e-books e dispositivos para leitura digital ainda não
tenham força expressiva no Brasil, o tempo dedicado à leitura passou a dividir
espaço com a oferta interminável de conteúdo nas redes sociais e plataformas de
streaming.
Além disso, novos canais de venda se abriram na internet. Com
isso, editoras passaram a ter a opção de vender diretamente para seus clientes,
empresas estrangeiras passaram a atuar no mercado nacional sem o custo de lojas
físicas – caso da Amazon – e plataformas que não se dedicam exclusivamente à
venda de livros passaram a competir com as livrarias.
Se as mudanças foram sentidas pelas principais empresas do
setor, o resultado sobre as menores foi devastador. Em condições mais
desfavoráveis de negociação, devido ao menor volume de vendas, fechar as portas
virou a única saída. Com a possibilidade de encontrar o melhor preço na
internet, a livraria do bairro deixou de ser a opção natural para comprar
livros.
Dessa forma, a concentração de mercado se aprofundou nos
últimos anos, a ponto de Saraiva e Cultura responderem, juntas, por 40% do
mercado varejista. Desde 2012, o número de lojas no Brasil caiu de 3.481 para
2.500. É um número bem abaixo da recomendação da Unesco, 20 mil, pela taxa de
uma para 100 mil habitantes.
FIDELIDADE PARA RESISTIR À CRISE
Cenário habitual em obras de Machado de Assis, a mítica Rua
do Ouvidor, no Centro do Rio de Janeiro, mantém uma tradição de abrigar
livrarias históricas desde o século 19, como a Garnier, Universal e José
Olympio. Hoje, além de uma megaloja da Saraiva, está ali a Folha Seca, uma
sobrevivente do processo de desaparecimento das lojas de rua.
O site da livraria está permanentemente em manutenção. Para
comprar livros, ligados a temas afro-brasileiros, samba e futebol, somente in
loco. Seus clientes sabem que os preços são mais altos do que nas grandes
livrarias, mas fazem questão de prestigiar o lugar que é ponto de encontro de
artistas e escritores. Entre eles, Luiz Antonio Simas, vencedor do Prêmio
Jabuti em 2016.
"Eu prefiro não comprar em megalivrarias, não compro
livros pela internet e sou cliente de uma pequena/imensa livraria de rua. É o
que está ao meu alcance fazer como um sujeito que preza os livros, as
amizades, as esquinas”, escreveu no Jornal do Brasil. "Fica minha
sugestão simples: escolham as suas livrarias de rua e sejam, na medida do
possível, fiéis a este amor cotidiano e necessário.”
A comemoração dos 21 anos de funcionamento, no último dia 20
de janeiro, ajuda a explicar como a Folha Seca conseguiu chegar até aqui. Fãs
da livraria se amontoavam na rua em torno de um piano de cauda, encomendado
para a festa.
Entre um copo de cerveja e outro, compravam livros. Não se
trata de uma exceção pela data comemorativa. Rodas de samba acontecem com
regularidade ali.
Mesmo em dias de semana, é comum encontrar Rodrigo Ferrari,
dono do espaço, confraternizando com clientes na Toca do Baiacú, bar vizinho à
Folha Seca. Ele acredita que esse atendimento, impensável nas grandes
livrarias, possibilitou a sobrevivência do estabelecimento.
"Se for pelo preço, a gente sabe que ninguém vai vir
comprar aqui, porque é só você fazer uma pesquisa de dois minutos na internet.
Nós fomos criando identidade e estabelecemos outros laços que não são os
comerciais, embora sejamos um comércio".
Foi na mesma Rua do Ouvidor que a Livraria Travessa teve sua
primeira loja. Gradualmente, filiais foram abertas em outros bairros da cidade
e, neste ano, será a vez de São Paulo e Lisboa receberem a livraria. Fundador
da empresa, Rui Campos rejeita a ideia de um "plano de expansão”. Em sua
visão, foi justamente o crescimento desenfreado que levou suas concorrentes à
situação desfavorável que vivem hoje.
"Ao mergulharmos na crise sem precedentes que o Brasil
enfrentou nos últimos anos, as nossas principais redes revelaram as estratégias
equivocadas em que se envolveram. Encontrando financiamento fácil
característico dos anos Dilma, usaram e abusaram de busca desenfreada por
aumento de faturamento visando ‘abertura de capital', sem nenhuma preocupação
com margens e resultados”, diz.
"Conduziram uma abertura acelerada de megalojas,
enxugamento de quadros com a demissão dos livreiros históricos e um forte
investimento em livros eletrônicos e em e-readers para leitura de e-books que
não performaram nem perto do que se apregoava. Sendo as livrarias criadoras de
demanda, nunca essa demanda será totalmente atendida por outras livrarias.
Muito irá se perder com consequências ruins para nossas editoras e para o
mercado livreiro”, avalia. Fonte: Deutsche Welle – 31.01.2019