É um artigo resumido, interessante pois foge um pouco da revisão distorcida da esquerda em relação a revolução de 1964. A esquerda com sua fé inabalável no socialismo não percebe que os fatos e dados históricos apontam que a sociedade apoiou a revolução. As viúvas do socialismo não percebem isso. As viúvas, talvez estão aguardando o socialismo do século XXI, saudosos e esperançosos para mais um fracasso.
O que fica evidente é que o processo que levou à ditadura não foi um processo que apenas mobilizou os militares, ao contrário, foi um processo que articulou ativamente setores civis consideráveis, justificando-se, a partir daí, chamar-se a ditadura de ditadura civil-militar, e não mais de ditadura militar, porque esse último nome acaba encobrindo, e fazendo esquecer, os civis que participaram do processo. Os militares têm razão em um ponto, é que as lideranças civis que foram importantíssimas no período anterior ao golpe, preparando o golpe, e durante a ditadura, os grandes capitalistas deste país, que tiveram extraordinários lucros durante a ditadura, escaparam incólumes do processo, e esse termo ditadura militar encobre completamente a participação dessa gente toda no processo.
Em parte, isso se tornou possível porque essas lideranças políticas migraram da ditadura para a democracia, com grande desenvoltura, e não só políticos, mas também lideranças empresariais, por exemplo, O Globo e a Folha de São Paulo, dois jornais que, ao longo dos anos 80, passaram por uma mudança de pele absolutamente fantástica, que ainda não foi estudada da forma como merecia. A Folha de São Paulo e O Globo foram jornais de choque durante o processo que levou em 1964 à instauração da ditadura, esses jornais foram sustentáculos da ditadura ao longo de todo o período, O Globo tornou o centro de um império monopolista das comunicações que não existe em lugar nenhum no mundo, mesmo no mundo capitalista avançado não existe, beneficiado, apoiando e apoiado pela ditadura.
Pois bem, ao logo do tempo, O Globo e a Folha de São Paulo foram mudando gradativamente de pele, sem nunca ter formulado nenhuma avaliação crítica sobre o período em que apoiaram abertamente a ditadura, e conseguiram essa proeza camaleônica.
Outro exemplo edificante: quando se instaurou a ditadura, em 1964, a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) apoiou a ditadura, com uma nota, abençoou o movimento vitorioso que resultou na ditadura, a ditadura vinha salvar o Brasil do caos e da baderna, e do comunismo ateu, e por isso merecia ser apoiada. É verdade que alguns segmentos da Igreja se rebelaram desde o início, e inclusive apoiaram as movimentações estudantis, oferecendo conventos e seminários para reuniões e eventos clandestinos. Mas, de um modo geral, a hierarquia católica apoiou a ditadura, a instauração da ditadura. Posteriormente, sabemos que a CNBB evoluiria e se tornaria, ainda nos anos 70, sobretudo na segunda metade dos anos 70, uma poderosa força contrária à ditadura civil-militar, e de tal forma ela atuou nesse sentido que, conscientemente ou não, a memória foi se apagando a propósito da atividade que ela exercera a favor da instauração do processo.
E a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB)? Quem é que não associa a OAB à luta pela liberdade, e à luta pela democracia no Brasil? No entanto, o conselho diretor da Ordem dos Advogados do Brasil também formulou voto de louvor à instauração da ditadura em 64. Com o tempo, a OAB mudaria igualmente de pele e passaria à oposição. Se formos aprofundar mais o estudo, veremos que a ditadura, no momento de sua instauração, foi apoiada por grandes movimentos de massa no Brasil, as chamadas Marchas da Família com Deus pela Liberdade. Essas marchas só foram organizadas contra o grande comício organizado pelas esquerdas pelas reformas de base, em 13 de março de 1964, realizado na Central do Brasil, no Rio de Janeiro, em frente ao Ministério da Guerra. No comício de 13 de março, havia 350 mil pessoas na Praça Duque de Caxias, na Central do Brasil. Uma semana depois, no dia 19 de março, em São Paulo, houve a primeira Marcha da Família com Deus pela Liberdade, quando se reuniram 500 mil pessoas.
Depois da vitória do golpe, houve uma outra Marcha da Família com Deus pela Liberdade no Rio de Janeiro, reunindo cerca de 1 milhão de pessoas. Antes disso já tinha havido outras no interior de São Paulo, e depois haveria dezenas e dezenas de marchas da família com Deus pela liberdade, houve gente marchando até setembro de 64. Outro exemplo: a ditadura, em 1965, criou um partido para apoiar o novo regime, a ditadura, chamado Aliança Renovadora Nacional, a Arena. Esse partido ganhou quase todas as eleições que se realizaram no período ditatorial. Prosseguindo, além de ter sido civil-militar, é, assim, evidente que a ditadura foi apoiada por grandes seções da sociedade brasileira. Precisamos discutir por que essas questões não são devidamente debatidas, por que a sociedade resiste a refletir sobre este passado. Por que prefere insistir em falar de ditadura militar, associando apenas os militares à ditadura, e, em relação aos militares, transmitindo deles uma visão de pessoas boçais, truculentas, imbecis.
Entretanto, o estereótipo não elucida os tempos que o Brasil viveu. Com efeito, quem dirigiu o Brasil, quem mandou neste país não foram boçais, não foram energúmenos chapados, não foram gorilas, foram intelectocratas, como eu os chamo, intelectuais do poder, e mais empresários, capitalistas, lideranças políticas, militares, empresariais, religiosas, impregnadas de um projeto modernista conservador, que, ao contrário do que aconteceu na Argentina – onde a ditadura desindustrializou o país, levou o país para baixo – , no Brasil, ao contrário, a ditadura levou o capitalismo para um patamar mais elevado e o Brasil conheceu tempos de grandes mutações, e se transformou em um país integrado em termos de comunicações, com uma indústria sólida, das mais importantes em termos do mal chamado Terceiro Mundo. O Brasil, entre a segunda metade dos anos 60 e os anos 70, apresentou um índice de mobilidade social e geográfica espantoso, era um país em mutação, era um país que prosperava, e isso empolgava. Todas essas considerações têm um sentido, o de chamar a atenção para o fato de que, ao contrário do que aparece nas comemorações realizadas depois que a ditadura passou, ao contrário da ideia de que a ditadura foi um corpo estranho à sociedade, do qual a gente se livrou, felizmente, é preciso reconhecer que a ditadura foi uma construção social e histórica da sociedade brasileira.
Insisto que esta é uma questão fundamental, estudar melhor as relações complexas entre sociedade e ditadura, para compreender as tendências profundas da nossa história, porque a ditadura, afinal de contas, foi à expressão de tendências autoritárias do País, tendências conservadoras e que inclusive podem ser perfeitamente associadas à mudança. Os conservadores nem sempre são reacionários, no sentido próprio da palavra, passadistas, arcaizantes, eles, às vezes, são modernizantes, e a ditadura civil-militar brasileira modernizou o País. Esse é um primeiro convite à reflexão que faço, a necessidade de estudar melhor às direitas, focar os vencedores, para que se possa compreender porque venceram. Se venceram, é porque tiveram apoio da sociedade, então esse é o primeiro ponto.
Antes de 1964, estavam em um movimento de radicalização, apontando para reformas profundas no País que levariam à superação e à destruição do capitalismo, à instauração de uma ditadura revolucionária. É muito difícil encontrar na documentação das esquerdas revolucionárias do Brasil elogios à democracia. As organizações queriam destruir o capitalismo, as forças armadas e instaurar uma ditadura revolucionária, como era o padrão do socialismo revolucionário do século XX. Com efeito, as grandes revoluções socialistas do século XX desembocaram em ditaduras revolucionárias, aconteceu na URSS, na China e em Cuba. Então, nada mais razoável, coerente, congruente que essas esquerdas revolucionárias raciocinassem nesses termos. Foram então à luta numa perspectiva ofensiva, revolucionária.
Fonte: Daniel Aarão Reis Filho - Ditadura militar e revolução socialista no Brasil- historiador e professor titular de História Contemporânea na Universidade Federal Fluminense (UFF). Possui diversos livros e artigos publicados sobre a história da esquerda no Brasil bem como sobre a história da experiência socialista no século XX.
Comentário: Na época os políticos Carlos Lacerda, Magalhães Pinto, Adhemar de Barros, Ulysses Guimarães e Juscelino Kubitschek, também apoiaram a revolução pensando que ela fosse passageira, com a função apenas de eliminar as organizações da esquerda e posteriormente voltaria o jogo político.