República extinguiu privilégio só dos Braganças, diz
historiador Murilo de Carvalho. Historiador lembra que regime proclamado em 1889 não incluiu
o povo, e democracia ficou ausente até os anos 1940
O pecado original da República, na avaliação de José Murilo
de Carvalho, foi não ter incluído o povo. "A República extinguiu o
privilégio dos Braganças, mas não conseguiu eliminar os privilégios
sociais", afirma o historiador sobre a proclamação que completa 130 anos
nesta sext a-feira (15).
"Para os propagandistas, República e democracia eram
indissociáveis. Mas a democracia, isto é, a participação popular no sistema
representativo, ficou ausente até a década de 1940", diz Murilo de
Carvalho, 80, que é cientista político e imortal da Academia Brasileira de
Letras.
Em entrevista ao jornal, o historiador reflete sobre o caráter
autoritário e pouco inclusivo do início do período republicano no Brasil e
afirma que, 130 anos depois, nossa república "continua sujeita à
interferência 'moderadora' das Forças Armadas".
A AUSÊNCIA DE POVO, EIS O PECADO ORIGINAL DA REPÚBLICA,
SEGUNDO O SENHOR. COMO E POR QUE O POVO NÃO FEZ PARTE DELA? A afirmação refere-se
à origem de nossa República. Para os propagandistas, República e democracia
eram indissociáveis. Mas a democracia, isto é, a participação popular no
sistema representativo, ficou ausente até a década de 1940. Até essa data,
tínhamos uma participação eleitoral inferior à que existiu até 1881, quando foi
introduzido o voto direto. Era uma república patrícia, uma república sem
democracia.
QUAL O SIGNIFICADO DE UMA REPÚBLICA SEM POVO? Na Grécia,
Roma, Estados Unidos a República convivia com a escravidão e com a exclusão
política das mulheres. Mas todo homem livre era cidadão ativo. A partir da
Revolução Francesa, no entanto, a democracia passou a ser componente
indispensável das repúblicas. No Brasil, a efetiva incorporação de povo, homens
e mulheres, no sistema representativo só aconteceu após a queda do Estado Novo.
A partir daí houve rápida e massiva inclusão eleitoral de povo. Nossa República
não suportou a carga e desmoronou em 1964.
O FATO DE ELA TER VINDO POR UM GOLPE MILITAR E NÃO POR UMA
REVOLUÇÃO MUDOU O CURSO DELA? Só Silva Jardim acreditava em revolução do tipo
da Francesa e pregava o fuzilamento do conde d’Eu [marido da princesa Isabel,
descendente da dinastia Orleans]. Não foi nem avisado do golpe. Ninguém mais,
além dele, queria sangue. A busca do apoio dos militares do Exército foi
oportunismo dos civis, sobretudo de Quintino Bocaiuva.
O problema dos políticos na primeira década da República foi
livrarem-se dos militares. Floriano Peixoto garantiu o novo regime, mas era
incômodo por despertar um movimento popular jacobino. A posição dominante entre
os republicanos, sobretudo os paulistas, era esperar a morte do imperador e
então impedir que Isabel tomasse posse. A transição viria de preferência via
Constituinte, solução aceita até mesmo por monarquistas como Saraiva [José
Antônio Saraiva, que chegou a ser nomeado pelo imperador para formar um
gabinete na madrugada de 16 de novembro mas nunca assumiu].
A PARTIDA DA FAMÍLIA IMPERIAL FOI ANTECIPADA PARA EVITAR
CONFLITOS. MAS O BRASIL É UM PAÍS VIOLENTO, SUSTENTOU SÉCULOS DE ESCRAVIDÃO E
TEM SEQUELAS. QUAL O PAPEL DA VIOLÊNCIA NA NOSSA QUESTÃO REPUBLICANA? A
violência está embutida em nosso DNA, independentemente de regimes políticos.
Os dez primeiros anos da República foram violentos: revoltas militares, guerra
federalista no Sul, Revolta da Armada e, sobretudo, o terrível massacre de
Canudos.
Qual tem sido o papel dos militares na nossa República,
visto que vez ou outra eles assumem papel na política? O papel variou ao longo
do tempo. Após a consolidação do regime com Campos Sales até 1930, a
participação foi em boa parte antioligárquica, liderada por oficiais
subalternos do Exército. Depois do Estado Novo, o papel passou a ser de tutela,
quando não de intervenção direta, comandada pela cúpula militar.
ANTES DA PROCLAMAÇÃO DA REPÚBLICA, TIVEMOS VÁRIAS REPÚBLICAS
QUE NÃO VINGARAM PELO BRASIL. O QUE LHES FALTOU? Eram manifestações locais e
provinciais, todas derrotadas pelas armas. A de maior êxito foi a Farroupilha
que separou o Rio Grande do Sul por dez anos e terminou por um acordo do
Império com os gaúchos. A repressão mais violenta verificou-se em revoltas que
envolviam segmentos populares, como a Confederação do Equador, a Cabanagem e,
já na República, Canudos e Contestado.
O QUE OS BRASILEIROS DESSE FINAL DO SÉCULO 19 ENTENDIAM
ENTÃO POR REPÚBLICA? Os republicanos, sobretudo os paulistas, queriam
autogoverno, isto é, eleição dos governantes, e federalismo à moda norte-americana.
A monarquia significava privilégio de uma família ou dinastia, marca do antigo
regime. A palavra democracia, significando governo pelo povo, fazia parte da
retórica, mas em nenhum momento foi ativada.
ESSE CONCEITO MUDOU DE ALGUMA FORMA ATÉ 2019? Hoje é difícil
saber o que as pessoas querem dizer quando falam em República, além de um
sistema de governo. O conceito confunde-se com o de democracia, como queriam os
propagandistas.
Os poucos que ainda o distinguem de democracia corretamente
o vinculam a certos valores como a igualdade perante a lei, a ausência de
privilégios, o bom governo, o cuidado com o bem público. Nesse sentido, pode-se
dizer que há hoje mais democracia do que República e talvez seja este um de
nossos principais problemas.
O SENHOR CITA EM SEUS ESCRITOS A EXCLUSÃO PELO VOTO —DE 30,6
MILHÕES DE BRASILEIROS, APENAS 2,4 MILHÕES PODIAM VOTAR NA VIRADA DO SÉCULO 19
PARA 20— E, ALÉM DELE, A QUESTÃO DA ABSTENÇÃO —NAS ELEIÇÕES DE 1910, CHEGOU A
40%. QUAL A IMPORTÂNCIA DO VOTO PARA UMA REPÚBLICA? Segundo a distinção
proposta, participação eleitoral tem mais a ver com democracia e menos com
República. Hoje, uma não pode existir sem a outra. Democracia sem república,
sem bom governo, sem igualdade civil, marcada por clientelismo, patrimonialismo,
nepotismo, é frágil. Assim como República sem ampla participação não tem
futuro.
DESDE 1930, SÓ CINCO ELEITOS PELO VOTO DIRETO CONSEGUIRAM
CONCLUIR SEUS MANDATOS [O ATUAL PRESIDENTE ESTÁ NO PRIMEIRO ANO DE GOVERNO];
QUATRO NÃO COMPLETARAM A GESTÃO E SETE PRESIDENTES NÃO FORAM ELEITOS PELO VOTO.
ESSA DEMOCRACIA É FRUTO DE FALHAS DA REPÚBLICA? É em boa parte fruto da entrada
tardia e rápida do povo no sistema político, da democratização da República. A
República patrícia não suportou o impacto e recorreu aos militares para conter
a onda democrática, aproveitando-se do conflito ideológico que dominava o
cenário internacional.
A REPÚBLICA ESTÁ EM CRISE? Quase todas as repúblicas estão.
A nossa continua sujeita à interferência “moderadora” das Forças Armadas.
COMO O SENHOR ANALISA A QUESTÃO FEDERATIVA? A Federação foi
uma das demandas mais fortes dos propagandistas, sobretudo dos paulistas e
gaúchos. O federalismo norte-americano era o modelo, embora ele tenha assumido
aqui sentido oposto.
Isto é, os federalistas norte-americanos eram os que queriam
salvar a união das colônias contra as tendências separatistas afinal adotadas
pelos sulistas para garantir a escravidão. O federalismo dos pais fundadores
acabou preservando a União e abolindo a escravidão, embora à custa de uma
sangrenta guerra civil, ao mesmo tempo em que dava ampla liberdade às unidades
federadas.
Entre nós, federalismo e centralização é um debate secular.
A enorme desigualdade das unidades da Federação leva a uma grande dependência
do governo central que, por sua vez, coíbe iniciativas estaduais.
POR VOLTA DE 1627, FREI VICENTE DO SALVADOR ESCREVE UMA
CITAÇÃO QUE VIROU CLÁSSICO SOBRE O BRASIL: “NENHUM HOMEM NESTA TERRA É
REPÚBLICO, NEM ZELA OU TRATA DO BEM COMUM, SENÃO CADA UM DO BEM PARTICULAR”. O
QUE NOS FEZ ASSIM? Apesar de ser lugar-comum, não é possível deixar de
mencionar a gênese de nossa economia e de nossa sociedade. Não é que o passado
nos condene. Mas as sociedades têm biografia, têm valores e práticas
arraigadas. Se não, como entender que com tanta desigualdade não tenhamos tido
qualquer revolução social? Como entender que com uma das maiores franquias
eleitorais do mundo não consigamos produzir políticas redistributivas,
limitando-nos ao assistencialismo distributivista?
O BRASIL DE HOJE TEM REPÚBLICOS? Nossos repúblicos podem ser
contados nos dedos. Olhando pelo ângulo da preocupação com o bem coletivo, só
os positivistas ortodoxos do início da República foram republicanos. Até
iniciativas republicanas acabam comprometidas. Veja-se a Operação Lava Jato.
Nada mais republicano do que igualdade perante a lei. Rico e
poderoso no Brasil nunca ia para a cadeia. A Lava Jato os mandou para lá.
Vitória da República. Mas aí vem a denúncia de práticas arbitrárias por parte
de promotores e juízes que ameaçam a validade das sentenças. Podemos voltar à
estaca zero. Derrota da República.
E NOSSA REPÚBLICA, TEM SALVAÇÃO? Só por milagre de frei
Vicente. Temos que avançar aos trancos e barrancos, combatendo sistematicamente
as desigualdades na economia e os privilégios na sociedade. A República
extinguiu o privilégio dos Braganças, mas não conseguiu eliminar os privilégios
sociais.
Temos pela frente o imenso problema de incorporar ao mercado
de trabalho os milhões de desempregados, subempregados e não empregáveis. Só
uma combinação de República e democracia, de bom governo e inclusão, pode
resolver o problema, se ainda tiver solução.
CONHEÇA 9 FIGURAS-CHAVE DA PROCLAMAÇÃO DA REPÚBLICA
Marechal Deodoro da Fonseca (1827-1892)
Defensor da monarquia, sempre fez questão de declarar-se
amigo e súdito fiel do imperador dom Pedro 2º. Foi apenas dias antes da
proclamação que Deodoro passou para o outro lado. Ao receber os republicanos
Benjamin Constant e Quintino Bocaiuva em sua casa, foi convencido de que o
gabinete comandado pelo visconde de Ouro Preto, ministro de d. Pedro 2º,
pretendia reduzir gradativamente o poder do Exército e da Marinha. Contrariado
com este fato, o marechal decidiu-se a derrubar a monarquia
Marechal Floriano Peixoto (1839-1895)
Encarregado da segurança do então primeiro-ministro e aliado
de d. Pedro 2º, o Visconde de Ouro Preto, se recusou a atirar nos rebeldes que
pediam a República e respondeu ao visconde: "Sim, mas lá [no Paraguai]
tínhamos em frente inimigos e aqui somos todos brasileiros!". Escolhido
vice de Deodoro, assumiu a Presidência em 1891 com a renúncia do presidente
Ruy Barbosa (1849-1923)
Escalado por Deodoro para ministro da Fazenda, o intelectual
tinha a missão de modernizar a economia brasileira. Renunciou ao cargo em 1891,
porém, com inflação nas alturas decorrente da bolha especulativa criada com as
políticas de Barbosa
Benjamin Constant (1836-1891)
Ex-militar e adepto das ideias do positivismo, foi figura
importante no trabalho de aproximação dos republicanos e o marechal
Deodoro
Campos Salles (1841-1913)
Foi um dos três republicanos a conseguir se eleger deputado
durante o Império. Com a proclamação, foi nomeado ministro da Justiça por
Deodoro. Substituiu o Código Penal do Império pelo da República. Em 1898, é
eleito o quarto presidente da República
Quintino Bocaiuva (1836-1912)
Jornalista e político, fundou em 1870 o Partido Republicano.
Ao lado de Benjamin Constant, é um dos responsáveis pela conversão do marechal
Deodoro, então monarquista, em defensor da república
D. Pedro 2º (1825-1891)
Segundo e último imperador do Brasil, foi derrubado pelo
golpe militar que proclamou a República em 15 de novembro de 1889. Dois dias
depois, com o banimento da família real, partiu para o exílio na França, onde
morreu, esquecido, aos 66 anos
Princesa Isabel (1846-1921)
Célebre por ter assinado a Lei Áurea, que um ano e meio
antes da proclamação da República aboliu a escravidão, tornou-se herdeira do
trono após a morte de seus dois irmãos. Partiu para o exílio com o pai em 17 de
novembro de 1889. Na França, posicionou-se contra as tentativas de monarquistas
no Brasil de restaurar o regime
Visconde de Ouro Preto (1836-1912)
Primeiro-ministro do gabinete de d. Pedro 2º, foi também
ministro da Marinha e da Fazenda. Nos últimos dias da Monarquia, tomou decisões
que enfraqueceriam o Exército, o que desagradou o marechal Deodoro e levou ao
decisivo alinhamento com os republicanos. Fonte: Fonte: Folha de São Paulo - 15.nov.2019
José Murilo de
Carvalho, formado em sociologia e política pela UFMG, mestre e doutor ciência
política pela Universidade de Stanford (EUA).
Comentário:
Pelo jeito ainda continua válida esta frase: “Nenhum homem
nesta terra é repúblico, nem zela ou trata do bem comum, senão cada um do bem
particular”. Frei Vicente do Salvador