Na sexta-feira em que a crise explodiu, dia 18 de outubro, o
empresário chileno Francisco Carreño decidiu ficar em seu restaurante a noite
toda, como um guardião.
"Eu estava disposto a me defender", diz ele,
lembrando o dia em que dezenas de lojas e supermercados em todo o Chile foram
saqueados e até queimados.
"Eu não podia simplesmente sair do meu restaurante,
tinha de salvá-lo se eles tentassem destruí-lo". A sorte jogou a seu favor
e seu restaurante, chamado Signore, não foi destruída pelos protestos. Mas, de
qualquer forma, o efeito veio depois.
Por estar localizado no setor de Tobalaba, que nas últimas
semanas tem sido um dos pontos de encontro dos protestos em Santiago, Carreño
foi forçado a fechar seu restaurante por dias, acumulando uma perda de 50% em
suas vendas no mês de outubro.
A situação, desde então, não mudou muito: Carreño só
consegue abrir as portas em alguns dias, a depender do tamanho dos protestos.
No entanto, Carreño — que também possui um pequeno empório
de produtos italianos chamado Tantano — precisa continuar pagando aluguel e
salários de seus funcionários, entre outras despesas do negócio.
"Esse é um terremoto silencioso. As reduções das vendas
estão destruindo a economia chilena", lamenta o empresário.
DESEMPREGO
A situação de Francisco Carreño não é isolada. Após três
semanas de manifestações incessantes — que começaram depois que o governo do
presidente Sebastián Piñera decidiu aumentar o preço da passagem do metrô —
milhares de micro, pequenas e médias empresas chilenas foram duramente afetadas.
A paralisação do comércio, serviços e turismo foi um golpe
econômico inesperado para quem não tinha reservas de dinheiro para se financiar
em momentos de crise.
Diante desse cenário, o temor é de que as pessoas percam
seus empregos.
"Até o momento, 70 mil empregos já foram perdidos, o
que equivale a quase um ponto (percentual na taxa) de desemprego. Se o país não
voltar a funcionar normalmente nos próximos 10 dias, ouso dizer que mais 500
mil empregos estão em jogo", diz Juan Pablo Swett, presidente da
Asociación de Emprendedores de Latinoamérica.
FALTA DE LIQUIDEZ
Carreño, por exemplo, teve que reduzir sua equipe em 30%.
"Não posso ser irresponsável e manter as pessoas se não posso dar a elas
segurança a longo prazo", diz ele.
De acordo com Swett, das pouco mais de um milhão de pequenas
empresas que existem atualmente no Chile, 15% hoje têm sérios problemas de
liquidez devido à crise.
"A economia está completamente bloqueada. Consumo,
decisões de investimento de grandes empresas e empresas estrangeiras e
contratação de pessoal estão paralisados. Em termos econômicos, uma tempestade
perfeita está ocorrendo no Chile", diz Swett.
Como exemplo, o presidente da Asociación de Emprendedores de
Latinoamérica diz que somente na indústria do turismo, composta por 9 mil
empresas que empregam aproximadamente 170 mil pessoas, as reservas caíram 51%.
"A imagem do país piorou muito, as pessoas não querem
mais vir para o Chile", acrescenta.
VESTUÁRIO
Outra área que está sendo muito afetada pela convulsão
social é a venda de roupas.
A empresária Heidy Valdivia tem uma loja de roupas há 15
anos no bairro Patronato, a poucos metros da Plaza Italia, o principal ponto de
encontro dos protestos em Santiago.
Desde o início da crise, ela foi forçada a manter sua loja
fechada e ficar "em guarda" para evitar saques. "Tivemos de nos
revezar para cuidar da mercadoria porque a polícia não garante isso"..
"Tenho medo porque acho que isso vai piorar. Não tenho
mais dinheiro e tenho medo de perder tudo o que foi difícil construir durante
anos", acrescenta.
Heidy diz que apenas com o aluguel gasta o equivalente a US$
1.900 (R$ 7,9 mil) por mês. Aos funcionários, paga US$ 126 (R$ 525) por semana.
As duas despesas continuam, apesar de nos últimos 20 dias não ter conseguido
vender quase nada.
"Quem vai se preocupar agora em comprar roupas?
Ninguém", diz ele.
"Ontem pude abrir a loja por um tempo e vendi apenas
três peças. Apóio as demonstrações porque acho que o Chile é muito desigual, às
vezes até vou lá. Mas isso já está me influenciando bastante e estou começando
a ver que afeta meu bolso também ", acrescenta.
Devido à sua localização, todo o bairro de Patronato (um dos
centros de vendas de roupas mais famosos da capital do Chile) tem sido afetado
por gás lacrimogêneo vindo da Plaza Italia.
Além disso, hoje suas paredes estão pichadas com parte dos
slogans dos protestos, como "Chega de abuso" e "O Chile
acordou". E, assim, as poucas lojas abertas estão cheias de ofertas de
última hora, tentando liquidar seus produtos.
Em um espanhol obstinado, um taiwanês proprietário de uma
das lojas diz: "Esses dias eu só chorei".
EMPRESAS SAQUEADAS
Pior ainda é a realidade das empresas que foram saqueadas
nas últimas três semanas no Chile.
De acordo com um estudo realizado pelo Ministério da Economia
chileno, existem quase 6.800 pequenas empresas que relataram roubo, saque ou
incêndio de seus negócios. De acordo com Juan Pablo Swett, com os últimos
eventos, esse número pode ter subido para 10 mil.
É o caso de Karina Cáceres, dona de uma farmácia de medicina
natural chamada Panul, que foi completamente saqueada no dia 20.
"Foi um pesadelo. Quando soube que eles haviam levado
tudo, quase desmaiei", lembra a farmacêutica, que está grávida de quatro
meses. O marido dela foi ao local tentar resgatar o pouco que restava.
No total, foram roubados aproximadamente US$ 12.800 (R$ 53,5
mil), além de computadores e televisões.
Desde aquele dia, a farmacêutica acha que seus negócios
podem ir à falência. O problema, ela diz, é que ainda tem dois empréstimos para
continuar pagando e, estando grávida, acha muito difícil encontrar outro
emprego.
"A incerteza é terrível. Estamos vivendo dia a dia,
tentando vender o que nos resta... estou angustiada", diz.
"Além da farmácia, criamos uma fundação, pensando nas
pessoas que nos saquearam. Vamos às comunidades ensinar as crianças a controlar
suas emoções. Então, a traição dói... porque também vendíamos nossos produtos a
preços populares", diz.
Karina deve continuar pagando o aluguel de US$ 2.280 (R$ 9,5
mil). No entanto, em outubro, ela recebeu
doze por cento do dinheiro que entra em um mês normal. Para a filha, não
poderá pagar pela educação no próximo ano. E foi assim que, de um minuto para o
outro, sua vida deu uma guinada completamente inesperada.
Os casos de Francisco Carreño, Heidy Valdivia e Karina
Cáceres são apenas alguns exemplos do que muitos pequenos e médios empresários
vivem no Chile após o surto social.
Os três empresários afirmam que são simpáticos à motivação
das manifestações: querem uma sociedade mais igualitária e justa, com melhores
aposentadorias e melhor qualidade em saúde e educação.
No entanto, eles temem que essa luta implique uma recessão
econômica que acabe com os negócios deles — apesar de o governo ter anunciado
na semana passada um plano de apoio a essas empresas, que inclui facilidades
para pagamento de impostos e flexibilidade para renegociação de dívidas.
"Os jovens estão brigando e não têm medo de nada. Mas
eu tenho. E quero que isso acabe", conclui Heidy. Fonte: BBC News Mundo-
quinta-feira, 14 de novembro de 2019
Comentário:
Se um indivíduo ou um grupo conseguem algo sem nenhum custo,
alguém acaba por pagar por isso. Se parece não haver nenhum custo direto para
um indivíduo isolado, há um custo social. De forma similar, alguém pode
beneficiar de "graça" de uma externalidade ou de um bem público, mas
alguém tem que pagar o custo de produção desses benefícios.