Minha capacidade de indignação política
atenua-se um pouco nos meses do ano que passo na Europa. Suponho que a razão
disso seja o fato de que, lá, vivo em países democráticos nos quais,
independentemente dos problemas de que padecem, há uma ampla margem de
liberdade para a crítica, e a imprensa, os partidos, as instituições e os
indivíduos costumam protestar de maneira íntegra e com estardalhaço quando
ocorrem episódios ultrajantes e desprezíveis, principalmente no campo político.
Entretanto, na América Latina, onde costumo
passar de três a quatro meses ao ano, esta capacidade de indignação volta
sempre, com a fúria da minha juventude, e me faz viver sempre temeroso, alerta,
desassossegado, esperando (e perguntando-me de onde virá desta vez) o fato
execrável que, provavelmente, passará despercebido para a maioria, ou merecerá
o beneplácito ou a indiferença geral.
Na semana passada, experimentei mais uma vez
esta sensação de asco e de ira, ao ver o risonho presidente Lula do Brasil
abraçando carinhosamente Fidel e Raúl Castro, no mesmo momento em que os
esbirros da ditadura cubana perseguiam os dissidentes e os sepultavam nos
calabouços para impedir que assistissem ao enterro de Orlando Zapata Tamayo, o
pedreiro pacifista da oposição, de 42 anos, pertencente ao Grupo dos 75, que os
algozes castristas deixaram morrer de inanição - depois de submetê-lo em vida a
confinamento, torturas e condená-lo com pretextos a mais de 30 anos de cárcere
- depois de 85 dias de greve de fome.
Qualquer pessoa que não tenha perdido a decência
e tenha um mínimo de informação sobre o que acontece em Cuba espera do regime
castrista que aja como sempre fez. Há uma absoluta coerência entre a condição
de ditadura totalitária de Cuba e uma política terrorista de perseguição a toda
forma de dissidência e de crítica, a violação sistemática dos mais elementares
direitos humanos, de falsos processos para sepultar os opositores em prisões
imundas e submetê-los a vexames até enlouquecê-los, matá-los ou impeli-los ao
suicídio. Os irmãos Castro exercem há 51 anos esta política, e somente os
idiotas poderiam esperar deles um comportamento diferente.
DESCARAMENTO
Mas de Luiz Inácio Lula da Silva, governante
eleito em eleições legítimas, presidente constitucional de um país democrático
como o Brasil, seria de esperar, pelo menos, uma atitude um pouco mais digna e
coerente com a cultura democrática que teoricamente ele representa, e não o
descaramento indecente de exibir-se, risonho e cúmplice, com os assassinos
virtuais de um dissidente democrático, legitimando com sua presença e seu
proceder a caçada de opositores desencadeada pelo regime no mesmo instante em
que ele era fotografado abraçando os algozes de Zapata.
O presidente Lula sabia perfeitamente o que
estava fazendo. Antes de viajar para Cuba, 50 dissidentes lhe haviam pedido uma
audiência durante sua estadia em Havana para que intercedesse perante as
autoridades da ilha pela libertação dos presos políticos martirizados, como
Zapata, nos calabouços cubanos. Ele se negou a ambas as coisas.
Não os recebeu nem defendeu sua causa em suas
duas visitas anteriores à ilha, cujo regime liberticida sempre elogiou sem o
menor eufemismo.
Além disso, este comportamento do presidente
brasileiro caracterizou todo o seu mandato. Há anos que, em sua política
exterior, ele desmente de maneira sistemática sua política interna, na qual
respeita as regras do estado de direito, e, em matéria econômica, em vez das
receitas marxistas que propunha quando era sindicalista e candidato - dirigismo
econômico, estatizações, repúdio dos investimentos estrangeiros, etc. -,
promove uma economia de mercado e da livre iniciativa como qualquer estadista
social-democrata europeu.
Mas, quando se trata do exterior, o presidente
Lula se despe de suas vestimentas democráticas e abraça o comandante Chávez,
Evo Morales, o comandante Ortega, ou seja, com a escória da América Latina, e
não tem o menor escrúpulo em abrir as portas diplomáticas e econômicas do
Brasil aos sátrapas teocráticos integristas do Irã.
O que significa esta
duplicidade? Que Lula nunca mudou de verdade? Que é um simples mascarado, capaz
de todas as piruetas ideológicas, um político medíocre sem espinha dorsal
cívica e moral? Segundo alguns, os desígnios geopolíticos para o Brasil do
presidente Lula estão acima de questiúnculas como Cuba, ou a Coreia do Norte,
uma das ditaduras onde se cometem as piores violações dos direitos humanos e
onde há mais presos políticos.
O importante para ele são coisas mais
transcendentes como o Porto de Mariel, que o Brasil está financiando com US$
300 milhões, ou a próxima construção pela Petrobrás de uma fábrica de
lubrificantes em Havana. Diante de realizações deste porte, o que poderia
importar ao "estadista" brasileiro que um pedreiro cubano qualquer, e
ainda por cima negro e pobre, morresse de fome clamando por ninharias como a
liberdade? Na verdade, tudo isto significa, infelizmente, que Lula é um típico
mandatário "democrático" latino-americano.
Quase todos eles são do mesmo feitio, e quase
todos, uns mais, outros menos, embora - quando não têm mais remédio - praticam
a democracia no seio dos seus próprios países, mas, no exterior, não têm
nenhuma vergonha, como Lula, em cortejar ditadores e demagogos, porque acham,
coitados, que desta maneira os tapinhas amistosos lhes proporcionarão uma
credencial de "progressistas" que os livrará de greves, revoluções e de
campanhas internacionais acusando-os de violar os direitos humanos.
Como lembra o analista
peruano Fernando Rospigliosi, em um artigo admirável: "Enquanto Zapata
morria lentamente, os presidentes da América Latina - entre eles o algoz cubano
- reuniam-se no México para criar uma organização (mais uma!) regional. Nem uma
palavra saiu dali para exigir a liberdade ou um melhor tratamento para os mais
de 200 presos políticos cubanos." O único que se atreveu a protestar - um
justo entre os fariseus - foi o presidente eleito do Chile, Sebastián Piñera.
De modo que a cara de qualquer um destes chefes
de Estado poderia substituir a de Luiz Inácio Lula da Silva, abraçando os
irmãos Castro, na foto que me revoltou o estômago ao ver os jornais da manhã.
Estas caras não representam a liberdade, a
limpeza moral, o civismo, a legalidade e a coerência na América Latina. Estes
valores estão encarnadosem pessoas como Orlando Zapata Tamayo, nas Damas de Branco, Oswaldo
Payá, Elizardo Sánchez, a blogueira Yoani Sánchez, e em outros cubanos e
cubanas que, sem se deixarem intimidar pelas pressões, as agressões e
humilhações cotidianas de que são vítimas, continuam enfrentando a tirania
castrista. E se encarnam ainda, em primeiro lugar, nas centenas de prisioneiros
políticos e, sobretudo, no jornalista independente Guillermo Fariñas, que,
enquanto escrevo este artigo, há oito dias está em greve de fome em Cuba para
protestar pela morte de Zapata e exigir a libertação dos presos políticos.
O curioso e terrível
paradoxo é que no interior de um dos mais desumanos e cruéis regimes que o
continente conheceu se encontrem hoje os mais dignos e respeitáveis políticos
da América Latina.
Fonte: O Estado de São Paulo - Domingo, 07 de Março de
2010 - Mario Vargas Llosa