Para os jovens, 50 anos é um considerável período de tempo.
Aos velhos, que já viveram mais de meio século, parece um ponto no passado.
Para a disciplina de história, uma data redonda, suscitando reflexões, debates
e a possibilidade de encontrar hipóteses e ângulos de análise inovadores e
construtivos.
Considerando os limites deste artigo, escolhi um tema a
respeito do qual tem havido muitas controvérsias. Refiro-me ao caráter da
ditadura.
Desde a vitória do golpe de 1964, as forças políticas de
esquerda, derrotadas, não hesitaram em caracterizar a ditadura como militar
Desde a vitória do golpe de 1964, as forças políticas de
esquerda, derrotadas, não hesitaram em caracterizar a ditadura como militar.
Tratava-se de isolar os mais importantes protagonistas, os chefes militares,
ridicularizados como truculentos, pouco inteligentes. Não passavam de
‘gorilas’, como se dizia. Era um recurso – legítimo – da luta política, quando
se pretende menos compreender o que se passa do que isolar e derrotar os
adversários ou os inimigos.
DITADURA MILITAR
A expressão consolidou-se entre as várias correntes que se
opunham ao regime. Consagrou-se como verdade indiscutível à medida que as
oposições cresciam, reforçando-se inclusive com adeptos da ditadura que dela se
afastavam e não queriam pensar ou falar de suas cumplicidades com a mesma.
Houve um momento, em meados dos anos 1980, em que a imensa maioria da sociedade
brasileira professava um horror sagrado à ditadura.
MEMÓRIA E HISTÓRIA
Uma operação de memória. Mas memória não é história. Esta se
constrói com evidências, obtidas em fontes disponíveis, compartilhadas pelos
pesquisadores.
Essas evidências mostram que diferentes – e amplos –
segmentos civis participaram ativamente da preparação do golpe, de sua
sustentação e do apoio aos governos ditatoriais. Não foi algo limitado às
elites empresariais e eclesiásticas, como René Dreifuss mostrou pioneiramente
nos anos 1980.
O golpe de 1964 não
foi um movimento exclusivamente militar. Diversos setores civis participaram de
sua preparação e de sua sustentação.
O processo teve caráter social, popular: milhões de pessoas
participaram das Marchas da Família com Deus pela Liberdade, que, iniciadas em
19 de março, prolongaram-se festivamente até setembro de 1964. Em todas as
capitais dos estados e em muitas cidades médias e pequenas, pessoas marcharam
saudando e se congratulando com a vitória do golpe, segundo trabalho de Aline
Presot até hoje não publicado.
A participação civil também envolveu instituições políticas,
econômicas e culturais. Um estudo sobre a Aliança Renovadora Nacional, a Arena,
partido da ditadura, mostrou suas extensas ramificações em todo o território
nacional: em 1978, quando já era imenso o desgaste do regime, esse partido teve
ainda cerca de 40% dos votos. Outros estudos revelaram o que pouca gente sabe:
a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Associação Brasileira de Imprensa
(ABI) e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), tidas com justiça
como atores importantes das lutas democráticas, saudaram o golpe. Só mais
tarde, migraram para o campo das oposições, denunciando os abusos de um regime
que tinha a tortura como política de Estado.
Outras pesquisas, envolvendo o futebol, a música sertaneja,
a multiplicação dos sindicatos e outros temas, vêm acumulando evidências quanto
à participação civil, direta ou indireta, na construção da ditadura e das
complexas relações que se estabeleceram entre diferentes setores da sociedade e
os governos ditatoriais.
Nunca houve unanimidade em favor da ditadura. Sempre houve
oposições, moderadas e radicais, que adotavam diferentes formas de luta
Cabe enfatizar que nunca houve unanimidade em favor da
ditadura. Sempre houve oposições, moderadas e radicais, que adotavam diferentes
formas de luta. Entretanto, só a partir de 1974 as oposições moderadas, cada
vez mais reforçadas por ex-apoiadores do regime, conseguiram maior audiência
social.
Por outro lado, no campo contraditório e heterogêneo dos que
apoiavam a ditadura, o processo não foi simples nem linear. Houve idas e
vindas, deserções, mudanças de lado, sem contar as expectativas frustradas de
lideranças civis de direita como Carlos Lacerda, Magalhães Pinto, Adhemar de
Barros, e mesmo de políticos centristas, como Juscelino Kubitschek e Ulysses
Guimarães: apoiaram o golpe, esperando uma intervenção brutal, mas rápida,
cujos resultados os beneficiariam. Não foi o caso. Muitos acabaram
marginalizados, condenados a papéis secundários, ou foram cassados, expulsos da
vida política, como Lacerda, Ademar e JK.
Também não é possível esquecer que muita gente ficou em cima
do muro, ou subiu nele quando julgou conveniente. Outros tantos, por alegado
medo, cruzavam os braços, ou nem cogitavam a existência do regime político.
Queriam trabalhar, constituir família, ter sucesso. Alguns lamentavam os
‘excessos’ dos agentes da ordem pública, mas aquilo lhes parecia uma
contingência quase inevitável. Mais importante é que o país crescia, progredia
– quem não gostasse que se retirasse.
Toda essa história precisa ser conhecida, estudada. Não para
crucificar os apoiadores da ditadura, algo inviável e inútil, mas para
compreender melhor as bases sociais e históricas de um regime ditatorial que se
instaurou quase sem resistência e se retirou em boa ordem, sem levar nenhuma
pedrada. O mesmo já acontecera com o Estado Novo, entre 1937 e 1945, coberto
pelo manto da memória conciliadora.
Fazer dos ‘milicos’ bodes expiatórios pode ser uma operação
simples e fácil: um outro manto. Economiza pesquisa e reflexão, mas não prepara
a sociedade brasileira para lidar, no futuro, com novos surtos de
autoritarismo. Fonte: Revista Ciência Hoje / Edição 313- Daniel Aarão Reis - Departamento
de História
Universidade Federal Fluminense