Houve
um tempo em que viajar de avião era uma experiência divina. Vem nos livros:
assentos espaçosos, aeromoças civilizadas, refeições dignas de um casamento
real.
Lamento.
Nunca conheci esse tempo. Em quatro décadas de vida, foi sempre a piorar. Hoje,
regressado de uma viagem de dez horas, pergunto: vale a pena o duplo
investimento? Falo do dinheiro para ir e do dinheiro para voltar.
"Voltar", aqui, é no sentido ortopédico do termo: haverá fisioterapia
para eu voltar a caminhar sem dores.
Tudo
começa antes da viagem propriamente dita. O mesmo mundo que conseguiu enfiar um
desgraçado na Lua é incapaz de encurtar os tempos de espera. O dia começa cedo,
obscenamente cedo, porque é preciso estar duas ou três horas antes no lugar de
embarque.
Cumprimos
a tortura (de despertar) e depois cumprimos a outra (de carregar): são malas de
20 kg, nunca menos, que arrastamos pela madrugada até o táxi chegar.
O
aeroporto se ergue no horizonte. Entramos. O cenário é Ellis Island, nos idos
de 1900: filas quilométricas que se mexem com velocidade paquidérmica.
Nós,
ensonados, já cansados, vamos empurrando a mala a pontapés. Às vezes ela cai
sobre o companheiro da frente. O companheiro nem reage. Somos como os animais
que caminham para o matadouro sem a energia suficiente para fugir ou chorar.
Segue-se
para o controle de segurança. Removo o laptop. Descalço os sapatos. Tiro o
cinto. Baixo as calças. O segurança diz que as calças não são necessárias.
Passamos pelo detector de metais. Algo apita.
Os
guardas aproximam-se com cara de caso e revistam-nos como se fôssemos
criminosos potenciais. Nada encontram e nós suspiramos de alívio. Temos a vaga
impressão de que não cometemos nenhum crime, mas nunca se sabe: como dizem os
médicos, um paciente saudável é alguém que não foi devidamente analisado.
Caminhamos
para a porta de embarque. Nos aeroportos modernos, isso significa que, a meio
do percurso, pensamos seriamente se não é preferível esquecer o voo e continuar
a pé até ao destino. Desistimos. Felizmente, só faltam 50 quilômetros para a
porta de embarque.
Na
porta, ninguém embarca. Mas já existem filas de passageiros que preferem
esperar em pé porque se esqueceram que o voo tem lugares marcados. Sempre
contemplei esses infelizes com caridade cristã: duas horas no aeroporto e eles
já não pensam; seguem o rebanho e torturam-se sem necessidade.
Entramos
no avião. Ou melhor, eu entro, sempre em último, e os companheiros lançam-me
olhares de desprezo, só porque eu tive a desfaçatez de esperar sentado.
O
meu lugar está ocupado com bolsas, livros, comida, às vezes uma criança de
colo. Quando informo que o lugar é meu, a luz que existia no olhar do parceiro
do lado extingue-se de imediato. Como é fácil destruir a esperança de um ser humano.
Sento-me.
Melhor: encaixo-me. E ali fico, um corpo embalsamado: se me jogassem numa
vitrine do Museu Britânico, eu seria mais uma múmia esperando pelo seu retrato.
Vem
a comida. É o melhor momento da viagem. Nunca entendi aqueles que reclamam do produto.
Eu provo, aprovo e até peço para embrulhar: tenho dois cães em casa que esperam
ansiosos pelo manjar.
Cansado,
esfaimado e delirante, sonho com lugares paradisíacos. No meu caso, esse lugar
é sempre o mesmo: a parte de trás de uma ambulância, onde vou finalmente
deitado na maca.
Acordo
na aterrissagem, levanto-me e uma estranha sensação invade o meu corpo. Por
momentos, penso que é a alegria de ter sobrevivido. Afinal, é apenas a minha
circulação sanguínea a regressar.
E no
futuro? A coisa promete. Leio em algum lugar que a Boeing tem um novo modelo na
praça: é o 737 MAX 10. Com 230 lugares (o primeiro Boeing 737 tinha 124
assentos), o avião tenciona transportar mais gente em menos espaço. Creio que
isso só será possível quebrando as articulações dos passageiros, mas prometo
investigar.
Quando
partilhei a informação com um colega viajante, ele rosnou: "Melhor ir no
porão". Pobrezinho!
Como é inocente! O porão! Será que ele não sabe que o porão não é para a gente?
É para animais ou cadáveres, duas classes que estão ligeiramente acima dos
passageiros regulares? Digo mais: na aviação comercial moderna, só viaja bem
quem vai na jaula ou no caixão. Razão tinha o poeta: quando viajar é preciso,
viver não é preciso. Fonte: Folha
de São Paulo - 04/07/2017-João
Pereira Coutinho - Escritor português