Todas
as utopias terminam em distopias. O que é verdadeiro para a política é
igualmente verdadeiro para a tecnologia. Ainda me lembro quando especialistas
vários diziam que as “redes sociais” simbolizavam uma nova aurora na história
da humanidade.
O
Facebook, por exemplo, iria levar a democracia ao Oriente Médio; e o YouTube
(eu sei, é uma “mídia social”, não uma “rede social”) também serviria propósitos
democráticos. No caso, permitindo que cada pessoa pudesse ser estrela por um
dia —ou por vários dias.
Acontece
que as utopias, políticas ou tecnológicas, têm sempre um problema de base: o
macaco primitivo que há em nós. Ou, para ser rigoroso, os macacos: aqueles que
controlam as “redes” e aqueles que usam as “redes”.
Sobre
os controladores, não era preciso ser um gênio para perceber que não há almoços
grátis. Mark Zuckerberg não criou o Facebook para unir famílias distantes,
aproximar amigos com os mesmos gostos ou promover debates livres sobre política
ou gastronomia.
O
Facebook vende os dados dos seus utilizadores e as empresas compram esses dados
para venderem produtos de uma forma, digamos, mais “personalizada”.
Além
disso, os macacos que usam as “redes” também não o fazem desinteressadamente.
As “redes” servem para alimentar e potenciar o “ser narcísico” que todos temos
de uma forma nunca antes vista.
E,
nesse quesito, entre a privacidade ou a vaidade, a maioria nem hesita: a
gratificação instantânea dos “likes” e dos comentários sempre foi mais forte do
que as virtudes silenciosas do recato.
No
último escândalo do Facebook —o uso indevido de informação de usuários para
fins de propaganda eleitoral— as culpas são repartidas por todas as partes:
pela empresa, que não protegeu os dados; pela Cambridge Analytica, que os
usurpou sob falsos pretextos; e pelos próprios utilizadores, que revelam sempre
mais do que é prudente ou desejável.
Mas
o Facebook não é caso único. Essa semana, uma mulher de 39 anos, Nasim Aghdam,
entrou na sede do YouTube, no norte da Califórnia, para se vingar. Mas vingar
de quê?
De
“discriminação”, disse a própria, antes de ferir três pessoas a tiro e de se
matar a seguir. No Youtube, a sra. Aghdam esperava encontrar uma fonte de
rendimento com seus vídeos vegan em defesa dos animais.
Só
que esse rendimento, tal como o rendimento do Facebook, não vem por caridade;
implica um número generoso de visualizações para que as empresas estejam
dispostas a fazer publicidade no vídeo do candidato a estrela.
Se
tivermos em conta que 300 novas horas de filmagens são disponibilizadas no
canal a cada minuto —repito, minuto—, não é preciso dizer mais nada.
É
por isso que, em rigor, o YouTube não serve para criar “estrelas” (embora elas
existam como grãos de areia no deserto). Mas serve, com grande eficácia, para
criar milhões de seres humanos ressentidos que desejam mais, muito mais do que
15 segundos de fama.
Se
os recentes incidentes com o Facebook e o YouTube servirem de lição para
milhões de otários; e se essas empresas, muito legitimamente, assumirem o que
são —modelos de negócio e não ONGs piedosas— talvez nem tudo esteja perdido.
Fonte: Folha de São Paulo - 6.abr.2018, João Pereira Coutinho, escritor
português e doutor em ciência política.
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