Em
500 anos, os EUA saltaram à frente da América Latina ao conjugar capitalismo e
democracia. No mundo pós-crise, começa a ficar claro que esse binômio se
constrói mais na política do que no mercado
Durante
sua primeira e única visita aos Estados Unidos, entre abril e julho de 1876, o
imperador dom Pedro II registrou em seu diário um feito que lhe chamou a
atenção: o trem que ligava Nova York a São Francisco completara o percurso
"em 84 horas e 26 minutos". Três dias e meio, apenas. No Brasil de 1876, a estrada de ferro
mais movimentada, cuja extensão era uma fração da ferrovia americana, fazia a
ligação entre as plantações de café e os portos do Rio de Janeiro e Santos.
Uma
equivalente a Nova York-São Francisco no Brasil deveria ligar Porto Alegre a
Fortaleza – e ainda faltaria chão. Por que os Estados Unidos, que então
comemoravam o primeiro centenário de sua independência, já tinham trens
rasgando o país do Atlântico ao Pacífico, enquanto no Brasil a maioria das
viagens era mesmo feita em lombo de mula?
A
questão que se apresentou ao imperador estava no seu nascedouro e, de lá para
cá, ficou ainda mais pertinente e intrigante: por que os Estados Unidos, que
largaram atrás de tantos países da América Latina, inclusive do Brasil,
conseguiram tamanho sucesso, enquanto a maioria da população da América Latina
só agora começa a experimentar a vida em padrões pouco acima da linha de
pobreza? Por que o "grande irmão do norte" se notabilizou por dois séculos
de estabilidade política e social, enquanto os países ao sul do Rio Grande
tiveram sua história entrecortada por golpes de estado e experimentalismos
econômicos, resultando em um nível de desigualdade obsceno que só rivaliza com
o da África?
Quem
der as respostas definitivas terá achado o Santo Graal do progresso material e
social. Enquanto isso não acontece, as explicações para o fosso vão ficando
cada vez mais refinadas. Uma delas aparecerá no próximo livro do economista
Bruce Scott, da Universidade Harvard, a ser lançado em novembro pela editora
Springer-Verlag, de Heidelberg, na Alemanha. Nos dois capítulos que antecipou a
VEJA, Scott mostra que, enquanto nos Estados Unidos se deu o surgimento
simultâneo da democracia e do capitalismo, a América Latina teve relação
conflituosa com esses conceitos, nunca corretamente entendidos por seus
líderes.
"A
América Latina sofre de falta de capitalismo, e não de capital", diz ele.
O economista afirma que o capital, nacional ou estrangeiro, só ruma para um
país quando se sente protegido por um conjunto de instituições. É por essa
razão, completa ele, que não funcionou o que parecia ser a bala mágica contra a
miséria na região, a famosa proposta do peruano Hernando de Soto, apresentada
no livro O Mistério do Capital. De Soto dizia que a regularização dos lotes e
casebres das camadas mais pobres da população permitiria seu uso como garantia
de empréstimos bancários e despejaria bilhões de dólares na economia formal.
Não foi o que aconteceu nos países onde a experiência de De Soto foi tentada. O
que deu errado? A precariedade institucional. Sem garantias explícitas de, em
caso de calote, recuperarem o empréstimo concedido ou o imóvel financiado, os
bancos não entraram na dança. Mais desanimador ainda para eles era recorrer à
Justiça. As sentenças demoravam, na melhor das hipóteses, oito meses e, na
pior, oito anos. Ou seja, sem regras o capitalismo não existe.
"A
recuperação do valor de um bem é, em última instância, um teste sobre a saúde
das instituições capitalistas", diz Scott. "E essas instituições
formam um sistema de economia política, não apenas de mercado." Eis uma
novidade, sobretudo vinda de um economista: quando se trata de promover
desenvolvimento capitalista, a política é superior ao mercado. É na política
que se definem as regras do jogo, cabendo ao mercado atuar dentro dessa
moldura.
Quanto
mais democrático for o regime, mais chance terá de criar instituições
saudáveis. Com a crise financeira mundial deixando patente a necessidade de
mais regulação do que preconizava a era Reagan, parece óbvio afirmar que a
política tem um papel a cumprir, mas nem sempre foi assim. O mercado, dizia-se,
trazia em si mesmo os germes do seu próprio aperfeiçoamento. A abordagem de
Scott inspira-se na corrente mais em voga para explicar o fosso econômico que
separa o norte e o sul das Américas: a tese institucional (veja o quadro).
Capitaneado
por teóricos como Douglass North e Ronald Coase, o novo institucionalismo
sustenta que as regras e normas, econômicas e políticas, formais e informais,
estão na base do desenvolvimento de uma sociedade. Nos Estados Unidos, desde os
primórdios da colonização inglesa, as instituições, que são resultado de
negociações políticas, protegem a propriedade privada, zelam pelo respeito aos
contratos e leis, garantem o funcionamento impessoal da Justiça, estimulam a
prestação de serviços públicos, como hospitais e escolas, para a maioria da
coletividade, e não apenas para uma elite.
No
começo da colonização, a América Latina era mais rica e tinha sociedades mais
complexas que a América do Norte. O Brasil, com terra e clima promissores, já
tinha vida comercial, com o pau-brasil e depois com o açúcar, mercadoria
altamente valorizada na época, enquanto as tentativas de colonização nos Estados
Unidos eram um fracasso atrás do outro.
Nos
primeiros 250 anos da colonização européia, a América ibérica teve alguma
vantagem sobre a América inglesa. Nos 250 anos seguintes, período em que as
colônias viraram países independentes e republicanos, o jogo inverteu-se
brutalmente. A renda per capita dos americanos e canadenses disparou (veja o
gráfico nas págs. 138 e 139). De acordo com as contas do cientista político
Francis Fukuyama, o ex-ícone do conservadorismo americano e editor de Falling
Behind, que trata do desnível entre as Américas, o calendário do fosso foi o
seguinte.
■ Até
cerca de 1800, o norte e o sul das Américas evoluíram de modo mais ou menos
semelhante.
■ De
1820 a
1870, período que concentrou as guerras de independência, a América Latina
encolheu 0,5% ao ano. Os Estados Unidos cresceram 1,39% ao ano.
■ De
1870 a
1970, com uma interrupção durante a depressão dos anos 30, a América Latina cresceu
até mais do que os Estados Unidos, mas num ritmo longe de cobrir a diferença.
■ De
1970 até agora, os Estados Unidos voltaram a crescer mais que os vizinhos do
sul, aprofundando o fosso.
■ Em
2001, a
renda per capita americana superava 27 000 dólares. A latino-americana não chegava a 6 000 dólares.
O
Brasil avançou em muitos aspectos, mas ainda é "a eterna promessa de
futuro", ora como celeiro do mundo, ora como potência verde, ora com
etanol, ora com pré-sal, mas sempre o país em busca de cumprir o vaticínio da
aurora redentora.
O
México progrediu, recuou e voltou a progredir, e ainda duela para superar a
frase imortal de Porfírio Diaz: "Pobre México, tão perto dos EUA e tão
longe de Deus". A Argentina fez pior. Já tendo sido mais rica que a Suíça,
andou para trás. Buenos Aires, cuja prosperidade pregressa deixou rastro nas
avenidas e cafés, nos teatros e na onipresença da arquitetura neoclássica,
transformou-se melancolicamente no que o escritor André Malraux chamou de
"capital de um império que nunca existiu". No início do século XIX,
com a dianteira americana se alargando, atribuiu-se o atraso latino-americano
ao trauma da conquista colonial, brutal e sangrenta.
Em
seguida, apareceu a tese da inferioridade cultural e religiosa dos ibéricos
católicos em relação aos anglo-saxões protestantes, o que não levava em conta o
contraste entre o sul e o norte dos Estados Unidos. Do início do século XX em
diante, a esquerda dizia que o atraso era produto do imperialismo americano, e
não atentava para o Canadá, que, ilhado pelo império, se a tese estivesse
certa, não deveria então ser a potência que já era e segue sendo.
Com
a peculiaridade de ser a única ex-colônia portuguesa e a única monarquia depois
da independência, o Brasil deu origem a teses também peculiares. Quando o
conceito de raça ainda era tido como verdade científica, dizia-se que os
Estados Unidos haviam saltado à frente porque eram hegemonicamente brancos. O
Brasil era atrasado porque era mestiço. (Do Canadá à Patagônia, o Brasil é o
país onde se deu a maior diversidade étnica das Américas.) Nos anos 30, ainda
que muitos não entendessem, a mitologia racial foi pulverizada pelo clássico
Casa-Grande & Senzala, do sociólogo Gilberto Freyre, que resgatou o valor
do negro na formação brasileira e abriu uma perspectiva de análise mais ampla –
cultural, social, histórica.
Em
1954, com Bandeirantes e Pioneiros, o escritor Vianna Moog dissecou a natureza
da colonização, mostrando que os pioneiros da colônia inglesa desenvolveram um
sentimento de pertencimento à nova terra devido às suas atividades produtivas,
enquanto os bandeirantes viviam interessados no extrativismo mineral, que era
um convite ao desenraizamento. Não há nas Américas dois países tão parecidos
como Brasil e Estados Unidos, ambos terra de índios dizimados e gigantes
continentais que apostaram na agricultura e na escravidão. Mas, por trás das
semelhanças, existem diferenças cruciais.
No
Brasil, os portugueses, depois de séculos sob a mística da poligamia moura,
eram mais disponíveis aos impulsos dionisíacos diante da beleza das índias e
das negras. Nos Estados Unidos, os ingleses, puritanos caucasianos, não. Para
os portugueses, a mulher era alvo e presa, e até padre católico se esgueirava
nas sombras por um chamego de negra. Para os ingleses, a mulher era uma
companheira e braço para o trabalho. Os portugueses chegaram sozinhos, sem
mulher nem filhos, movidos pelo desejo de enriquecer e voltar à pátria-mãe, vitoriosos.
Os ingleses, não. Vieram com família, dispostos a criar uma nova vida na nova
terra. Nas pinturas que retratam as primeiras horas do Brasil e dos Estados
Unidos, só no norte aparecem mães embalando berços. Os ingleses queriam fundar
sua pátria calvinista. Os portugueses estavam em busca do Eldorado. Os
ingleses eram colonizadores.
Os
portugueses, conquistadores. Longe da família, já com a cobiça pela riqueza
tomando o lugar antes ocupado pela reverência católica à pobreza, o português,
nos trópicos, fez-se outro. Na definição inspirada de Vianna Moog: "Ao
forte e exuberante português da Idade Média e das Descobertas sucedeu o outro,
mulhereiro, cobiçoso, guloso, onzenário, inventor de receitas de doces,
barroco, presa de angústias e daquela tristeza apagada e vil em que já o
surpreendia Camões no fim do século XVI".
Do
caldeirão de diferenças e semelhanças nasceram ordens políticas e econômicas
tão diferentes entre o norte e o sul. Mas por quê? As instituições decorrem das
condições materiais de cada lugar ou são moldadas pelo interesse do
colonizador? Em 2002, os economistas Stanley Engerman e Kenneth Sokoloff
mostraram como as instituições refletem as condições materiais. Por exemplo:
onde havia terra e clima adequados ao cultivo de cana-de-açúcar o europeu
recorreu à escravidão porque precisava de braços para plantar e colher.
A
Geórgia, no sul dos Estados Unidos, é um caso lapidar. A colônia foi fundada
por James Oglethorpe, um reformista social com uma boca feminina e um narigão
de corvo, que fez questão de proibir, por escrito, a escravidão. Mas a pressão
dos fazendeiros, ávidos pelo braço do negro, levou à legalização do trabalho
escravo em apenas uma geração. Eis por que os ingleses eram humanitários no
norte e escravocratas no sul dos Estados Unidos, em Barbados e na Jamaica.
Na
América espanhola, as instituições também foram assumindo formas distintas
conforme as condições locais. No Peru, populoso e rico, eram fechadas,
controladas pelo colonizador. Na Argentina e no Chile, então mais pobres e
menos populosos, o controle colonial era mais frouxo, o que acabou encorajando
maior participação comunitária na vida pública.
O
inglês James Robinson, professor de Harvard, acredita na importância das
instituições, mas não as considera resultado direto das condições materiais.
Acha que são guiadas pelo interesse do colonizador. Robinson diz que nas
colônias ricas e populosas não interessava ao europeu dar direitos civis e
econômicos à maioria da população. Foi o que ocorreu na maior parte da América
Latina. Já nas regiões mais pobres e com baixa densidade populacional, onde os
próprios europeus constituíam a maioria, era interessante ter mais liberdade e
proteger direitos de propriedade. Foi o que aconteceu no norte dos Estados
Unidos e no Canadá. "As instituições econômicas nas diversas colônias
foram moldadas pelos europeus de modo a beneficiar a eles mesmos", diz
Robinson.
Sejam
as instituições produto do meio ou do homem, ou um pouco de cada coisa, é certo
que o atraso da América Latina resulta de sua riqueza inicial. É o paradoxo da
abundância. A fartura de recursos naturais no raiar da colonização explica as
instituições deformadas: exclusivistas, autoritárias, concentradoras. A
relativa pobreza do norte da América inglesa, onde a agricultura não convidava
à escravidão e a propriedade privada da terra foi multiplicada, é a razão de
suas instituições mais funcionais: homogêneas, igualitárias, democráticas.
A
missão da América ibérica é livrar-se da herança institucional do passado
colonial que emperra o crescimento, a radicalização da democracia e a superação
da desigualdade aguda. Mas a tarefa é politicamente mais complicada do que
parece. As instituições podem ser eliminadas do papel com uma canetada. Outra
coisa é desentranhá-las da vida cotidiana.
Os
Estados Unidos fizeram uma guerra civil para abolir a escravidão, brutal
ruptura da ordem política, mas a herança desse período se perpetuou por décadas
na segregação racial, até Martin Luther King liderar a conquista da igualdade
nos anos 60. Mesmo assim, a tensão racial chegou até os dias de hoje. No
Brasil, a elitização do poder político começou na colônia e, apesar da
independência, do fim da escravatura, da Revolução de 30, da industrialização,
da redução do analfabetismo, da universalização do voto, apesar de tudo, ela
ainda está aí. No Nordeste, onde o Brasil nasceu e onde é ainda mais arcaico, o
coronelismo, versão atualizada do mando escravocrata, resiste à extinção.
O historiador José Murilo de Carvalho, da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, encontra as raízes do atraso brasileiro
na ausência de rupturas – não por acaso, na maior delas, a Revolução de 30,
nasceu o Brasil moderno. A falta de rupturas, diz o historiador, é um problema
porque consome o tempo das reformas.
Os
estudiosos Adam Przeworski e Carolina Curvale, da Universidade de Nova York,
calcularam o custo anual de adiamento da independência (165 dólares per capita)
e de tumulto posterior (70 dólares), assim considerado o período decorrido
entre a independência e o fim do mandato do primeiro dirigente eleito. No
Brasil, o custo foi de 12.200 dólares. Ou seja: se o Brasil tivesse ficado
independente mais cedo e politicamente estável em seguida, a renda per capita
do brasileiro seria hoje 12.200 dólares maior – ou cerca de 20.000 dólares,
curiosamente igual à de Portugal. Num país em que Getúlio Vargas
virou líder do operariado sindicalizado, e o operário sindicalizado Luiz Inácio
Lula da Silva virou líder do lumpesinato, o pendor para as instituições
enjambradas é uma dificuldade adicional. Eliminá-las requer a extinção das
condições que as criaram.
No
mundo das reformas, já se tentou até transplantar instituições de um país para
outro, como fez a Inglaterra na Índia, mas não funcionou. Por diversas razões,
inclusive resistência cultural, a Índia não se deixou impregnar pela ordem
inglesa. Eis um favor decisivo: instituições, para produzir efeito, precisam
ser absorvidas. É um lembrete útil para a casta de consultores que, regiamente
remunerados, se entregam a papagaiar receitas institucionais como se sua
aplicação fosse tão natural e inevitável como a lei da gravidade. Sem a
intermediação da política, elas não desabrocham.
Entre
os economistas, sociólogos e historiadores, há controvérsia sobre os fatores
decisivos para o desenvolvimento, mas existe o consenso de que, sem educação,
não há avanço. E, de novo, a educação é uma construção política. Em 1850, os
Estados Unidos já tinham a população mais educada do planeta. No Caribe inglês,
as primeiras escolas só foram abertas em 1870, o que explica seu atraso. Em 1950, a renda per capita da
Coreia do Sul correspondia a 8% da americana. Em 2000, era metade. Nenhum país
latino-americano avançou tanto no último meio século. Nenhum fez, nem de longe,
o investimento sul-coreano em educação. No Brasil, a educação, escassa e
precária, fincou raízes cedo, sob a influência da atrasada família real
portuguesa, que não realizou a reforma religiosa do catolicismo, nem a
revolução econômica do capitalismo, nem a revolução científica. Isso se refletiu
na falta de democracia, na falta de capitalismo e, é claro, na educação do
povo, desastrosa na colônia, no império e nos primeiros 100 anos da República.
Dom Pedro II talvez tenha sido o dirigente mais culto da história do Brasil.
Tinha
curiosidade científica, interessava-se por tecnologia, falava espanhol,
italiano, francês, inglês, alemão e hebreu e dizia que, se não fosse imperador,
queria ter sido professor. Quando anotou em seu diário, no dia 5 de junho de
1876, que o trem levara 84 horas e 26 minutos de Nova York a São Francisco,
talvez não tivesse clareza de que aquilo era fruto da conjunção de democracia e
capitalismo na América, mas intuía que o Brasil do lombo de mula já estava em
busca do tempo perdido. Fonte: Revista Abril - Edição 2130 / 16 de setembro de
2009
Comentário:
O Brasil continua perdido no tempo, pois, a educação anda no lombo de burro .
As camadas mais pobres não visualizam que a educação é o planejamento futuro
dos filhos. Eles preocupam com o
trabalho que é imediatismo e as mesadas
sociais do governo. E a política sabe como manobrar essa parte social.
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