O
escrivão Pero Vaz de Caminha relata que, ao atracar em Santa Cruz, a esquadra
de Cabral foi visitada por dois habitantes da terra, mancebos e de bons corpos,
que se metiam em almadias, embarcações rústicas feitas de troncos de madeira
atados entre si.
A
cena é o encontro entre duas civilizações separadas por um enorme abismo de
evolução científica e tecnológica. Enquanto as almadias estão entre as mais
primitivas formas de navegação usadas pelo ser humano, as naus e as caravelas
portuguesas são o que de mais avançado a arte de navegar produziu até hoje.
Nossos navios levam a bordo instrumentos, cartas de navegação e conhecimentos
desenvolvidos pelos mais importantes sábios da cristandade – matemáticos,
astrônomos, cartógrafos, geógrafos, especialistas na construção de navios e uso
de artilharia, vindos de diversos países.
Portugal
está na liderança dos descobrimentos porque é o primeiro, entre os países
contemporâneos, a transformar a pesquisa tecnológica e científica em política de Estado.
É uma aventura que começou dois séculos atrás, com as primeiras e tímidas
incursões ao mundo desconhecido, e se completou com a política de portas
abertas a especialistas espanhóis, catalães, italianos e alemães, com o
propósito de avançar os conhecimentos náuticos de nossos oficiais e marujos.
CARAVELAS
As
caravelas são um prodígio da nossa tecnologia e a vanguarda das expedições. São
navios velozes e relativamente pequenos. Uma típica caravela portuguesa tem de 20 a 30 metros metros de
comprimento, de 6 a
8 de largura, 50 toneladas de capacidade e é tripulada por quarenta ou
cinqüenta homens. Com vento a favor, chega a percorrer 250 quilômetros por
dia. Utiliza as chamadas velas latinas, triangulares, erguidas em dois ou três
mastros. Elas permitem mudar de curso rapidamente e, em ziguezague, velejar até
mesmo com vento contrário. A grande vantagem das caravelas sobre os pesados
navios mercantes utilizados no Mediterrâneo por genoveses e catalães é a
versatilidade. Ideais para navegação costeira, podem entrar em rios e
estuários, manobrar em águas baixas, contornar arrecifes e bancos de areia. E
também zarpar rapidamente, no caso de um ataque imprevisto de nativos hostis.
NAUS
As
naus são barcos maiores e mais lentos. A capitânia de Pedro Álvares Cabral é um
navio de 250 toneladas e, ao partir, levava 190 homens. Elas são a ferramenta
essencial no comércio já estabelecido com a África e no nascente intercâmbio
com as Índias. Na longa viagem de ida, transportam produtos para a troca,
provisões, guarnições militares, armas e canhões. Na volta, trazem as
mercadorias cobiçadas pela Europa. Suas velas redondas são menos versáteis que
as das caravelas, mas permitem uma impulsão muito maior com vento favorável. As
caravelas, ao contrário das naus, levam pouca carga. Nem é necessário. Nessa
época de grandes descobertas, a carga mais preciosa que elas podem transportar
é a informação sobre as rotas marítimas e as terras recém-contatadas – um
produto que não pesa nada, mas é vital para as conquistas no além-mar.
CONHECIMENTO
CIENTÍFICO E TECNOLOGIA
A
vela latina, que equipa nossas caravelas, foi trazida pelos árabes do Oceano
Índico, depois de conquistarem o Egito. O uso do compasso para anotar a direção
e a trajetória do navio chegou ao Ocidente no começo do século XIII. A
confecção de cartas náuticas os italianos também aprenderam dos árabes, um
século atrás. O astrolábio, um revolucionário instrumento de localização
utilizado pela esquadra de Cabral na Terra de Santa Cruz, existe desde a
Antiguidade e foi recuperado pelos astrólogos medievais para observar, em
terra, o movimento e a posição dos astros no firmamento. Mesmo a bússola,
fundamental nos descobrimentos, já é usada no Mediterrâneo há muito tempo por
genoveses, venezianos e catalães.
São
muitos os desafios científicos que os descobrimentos impuseram a Portugal. O
maior deles, evidentemente, é sair ao mar alto e voltar para casa com
segurança. Até pouco tempo atrás, a navegação se restringia aos portos europeus
e da área em
volta do Mediterrâneo, todos mapeados e bem conhecidos do
mundo civilizado desde a época dos romanos. Navegava-se mais por experiência –
que em Portugal chamamos de "conhecenças" – do que por instrumentos.
O único tipo de carta náutica disponível até anos atrás eram os mapas do
Mediterrâneo desenhados pelos italianos no século XII.
Conhecidos
como carta-portulano, forneciam direções e distâncias aproximadas entre os
principais portos europeus e africanos.
No
começo, as navegações portuguesas pelo Mar Oceano foram relativamente simples,
apesar do desafio de enfrentar o desconhecido: bastava ir bordejando a costa da
África. Navegava-se apenas durante o dia, usando como referência pontos
geográficos, como rios, golfos e montanhas. Quando era necessário navegar à
noite, a referência era a estrela Polar, entre nós conhecida como Tramontana.
Quanto mais alta a estrela estivesse no céu, mais longe da linha do Equador
estaria o navio, na direção do Pólo Norte. As medições eram feitas a olho nu.
Depois
foram aperfeiçoadas com o uso de um instrumento chamado quadrante. É um arco
graduado, de 45 graus – equivalente a um quarto da esfera terrestre –, equipado
com uma agulha e uma linha esticada por um peso de chumbo na ponta. Apontado
para a Tramontana, o quadrante fornece a latitude exata em que se encontra o
navio.
Quando
os nossos marinheiros passaram a se aventurar mais longe da costa, tudo ficou
mais difícil. Para fugir das calmarias do Mar Oceano, às vezes é preciso passar
semanas sem avistar terra ou qualquer outro ponto seguro de referência. Além
disso, ao se aproximar da linha do Equador, a Tramontana fica encoberta no
horizonte. Sem ela, é impossível calcular a latitude com ajuda do quadrante.
Foi para superar esse tipo de obstáculo que os reis portugueses se empenharam
em buscar sábios em outros países.
Os
sábios estrangeiros têm vindo a Portugal por duas razões. A primeira é a
disposição da corte de oferecer-lhes postos de trabalho e status social que
eles não tinham em
outros reinos. De cientista em seu país de origem, esses
astrônomos, matemáticos e cartógrafos passaram a trabalhar diretamente como
conselheiros dos monarcas portugueses e com eles compartilhar a vida na corte.
O segundo motivo é a comparativa tolerância religiosa dos portugueses. Mais
inflexíveis, os monarcas espanhóis, precursores da idéia de expulsar judeus e
mouros que não aceitassem abraçar o cristianismo, beneficiaram Portugal
indiretamente. Os conselheiros que dom João II reuniu para desenvolver os
conhecimentos náuticos são, em sua maioria, sábios judeus expulsos da Espanha
em 1492.
BÚSSOLA
E QUADRANTE
Quadrante
|
A bússola e o quadrante são muito úteis às navegações, mas a grande novidade a bordo dos nossos navios neste começo de século é o astrolábio. É um disco, metálico ou de madeira, de 360 graus no qual estão representados todos os astros do zodíaco. Desde a Antiguidade era usado em terra firme, para calcular a posição e o movimento dos astros no céu. O que os portugueses fizeram com a ajuda dos sábios estrangeiros foi simplificá-lo e adaptá-lo para uso em alto-mar. O astrolábio permite calcular a latitude pela passagem meridiana do Sol, ou seja, ao meio-dia, quando o astro se encontra no seu ponto mais elevado no céu. Para isso, é necessário enquadrar o raio solar em dois orifícios existentes no aparelho e, em seguida, fazer alguns cálculos matemáticos.
VANTAGEM
TECNOLÓGICA
Astrolábio
|
A viagem
de Cabral, pelo que se tem notícia, foi a primeira a fazer uso sistemático do
astrolábio como instrumento de navegação – embora Vasco da Gama já tivesse
testado o aparelho na precursora missão em que descobriu o caminho das Índias,
há três anos. Uma prova da utilidade do astrolábio está na carta que Mestre
João, o médico do rei e especialista em navegação embarcado na frota de Cabral,
escreveu a dom Manuel. Ele conta que, no dia 27 de abril de 1500,
segunda-feira, tomou a passagem meridiana do Sol na Terra de Santa Cruz e
calculou a latitude local em 17 graus. Diz ter chegado a essa conclusão
baseando-se nas "regras do astrolábio", referência ao manual de
instruções. Na carta, Mestre João reclama da dificuldade de usar o instrumento
em alto-mar, devido ao balanço do navio, mas encerra com um conselho: "Para
o mar, melhor é dirigir-se pela altura do Sol, que não por nenhuma estrela; e
melhor com o astrolábio, que não com quadrante nem outro nenhum
instrumento". É assim que, na prática, vão se somando os conhecimentos
tecnológicos que guiam a aventura dos descobrimentos.
INDÚSTRIA
NAVAL
O
crescimento da indústria naval transformou a paisagem do litoral português. Os
dois maiores estaleiros funcionam em Lisboa e na cidade de Lagos, no Algarve,
perto de Sagres. São formigueiros humanos, repletos de esqueletos de caravelas
e naus em construção, que atraem gente de toda a Europa. O trabalho é dirigido
pelos mestres carpinteiros, artesãos altamente especializados, cujo ofício é
passado de pai para filho. São eles os encarregados de selecionar a madeira
adequada para cada seção do navio. O carvalho para a quilha – a espinha dorsal
dos barcos – é trazido do Alentejo, na fronteira com a Espanha. O pinheiro para
o casco vem da costa do Atlântico, cujas florestas são reservas protegidas por
lei. O lastro – peso necessário para manter o navio estável abaixo da
linha-d'água – é feito de rochas. Nas expedições à África e, a partir de agora,
também às Índias, as rochas são lançadas ao mar no porto de destino e
substituídas pela carga de especiarias, que fazem o papel de lastro na viagem de
volta.
OS
ESTALEIROS ATRAEM GENTE DE TODA A EUROPA E MUDAM A ECONOMIA
Também
vital na construção dos navios é a disponibilidade de ferro e de material de
vedação, como breu, estopa, alcatrão e cânhamo. A escassez desse tipo de
suprimento obriga Portugal a gastar muito dinheiro com importação em outros países. O
ferro de melhor qualidade vem das minas bascas, enquanto o cânhamo é produzido
nas regiões de Bordéus e da Bretanha, na França. Apesar dos avanços nas
técnicas de vedação, a inundação dos navios pela água do mar ainda é um grande
problema nas viagens de longa distância. Nossos mestres construtores
desenvolveram uma bomba de sucção, feita de madeira com anéis de ferro.
Acionada manualmente por um marujo, essa bomba funciona dia e noite nas viagens
oceânicas. Só assim é possível manter os barcos à tona.
Outra
novidade incorporada à construção naval portuguesa recentemente é o seguro das
embarcações. Antes de partir, cada navio contribui com 2% do valor de sua carga
para o tesouro real. Em troca, viaja protegido contra perdas em guerras,
tempestades e outras catástrofes naturais, e também contra taxas inesperadas em
portos estrangeiros.
Uma
contribuição decisiva para a aventura portuguesa nos mares foi dada, nos
últimos anos, por um sábio judeu de origem espanhola. Abraham-ben-Samuel
Zacuto, chamado Abraão Zacuto, é o autor de Almanaque Perpétuo, obra de
astrologia que, adaptada ao uso náutico, se tornou fundamental nas expedições
do descobrimento. Com 316 páginas e 56 tabelas, o almanaque de Zacuto fornece
todas as informações necessárias para a determinação da latitude, incluindo as
chamadas declinações, que são as diferentes posições do Sol no zodíaco a cada
dia do ano. Redigido originalmente em hebraico, o almanaque foi traduzido para
o latim por outro estudioso judeu, José Vizinho, médico do rei dom João II.
Hoje, é um manual prático de orientação para nossos pilotos.
Natural
de Salamanca, a cidade do saber na Espanha, Zacuto teve de partir depois da
expulsão dos judeus pelos reis católicos, em 1492. Imediatamente foi convidado
a trabalhar em Portugal como conselheiro de dom João II e, depois, de dom
Manuel. Deu instruções pessoais a Vasco da Gama antes da partida da expedição
que descobriu o caminho das Índias. Zacuto pertence a uma linhagem de astrólogos
que costumavam passar dias e noites observando o céu na tentativa de prever, no
movimento dos astros, o destino do ser humano. Hoje, com o avanço da pesquisa
científica, a astrologia vai sendo relegada ao terreno das superstições, pelo
menos entre os ilustrados. Sem ela, no entanto, a humanidade não teria
acumulado tantos conhecimentos sobre os astros, de vital importância para as
navegações portuguesas.Fonte: Veja
- VEJA, 1° de julho- edição 1501
Comentário:
Já
naquela época, o saber e o conhecimento científico eram estratégicos e usados
como tecnologia em navegação, com finalidade de
abrir rotas de comércio e anexar terras produtivas as propriedades da
coroa portuguesa. Hoje na essência continua a mesma coisa, países com domínio
da tecnologia e conhecimento científico dominam o comércio exterior. O Brasil
ainda não percebeu que a educação é estratégica para impulsionar o país para as rotas do competitivo
comércio exterior.
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