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sábado, 18 de junho de 2011

Reféns do crack - O drama de uma família

Da noite de segunda-feira até o meio da tarde de quinta-feira, a família de uma socióloga de 34 anos e seu filho de dois anos enfrentou um pesadelo. Ao se dirigir a uma boca de fumo no Campo da Tuca, na Capital, para comprar crack com a criança, permaneceu presa por ordem de traficantes. Sua libertação, após o sumiço ganhar repercussão na imprensa, a livrou do domínio dos bandidos, mas não garantiu a soltura de um longo cárcere imposto pela dependência química.

Enquanto a quadrilha possivelmente buscava maneiras de conseguir dinheiro com sua captura, ela era mantida sob efeito permanente da pedra. Em razão disso, deixou o cativeiro com dificuldades para respirar e foi imediatamente internada em uma clínica para desintoxicação. O menino, resgatado faminto e assustado, é mantido sob os cuidados da avó, professora universitária de 63 anos, e do irmão mais velho da dependente, também sociólogo, de 38 anos. Ainda abalados com o episódio, ontem à tarde os dois familiares receberam ZH em um apartamento na Capital para narrar o drama de quem luta para se livrar das grades invisíveis do crack. Confira trechos da entrevista.

 “Nós ficamos apavorados”.

Zero Hora – Como começou a dependência química?

Mãe – A minha filha já era uma dependente em potencial, por questões químicas, biológicas. Hoje, depois de começar o tratamento, que eu comecei a participar de reuniões e também fazer terapia, eu entendo melhor o problema. Antes, quando eu descobri que ela estava usando crack, eu trabalhava muito na pressão e na cobrança.

ZH – Como a família descobriu o vício?

Mãe – Muda o comportamento. Começa a não cumprir as suas obrigações, a ter atitudes...a sumir coisas, a vender. Hoje ela tem 34 anos, começou com pouco mais de 30. Ela se formou na Ulbra em Ciências Sociais, trabalhava, tinha carro. Ela trabalhava mais na área de eventos, sempre gostou muito de eventos, capacitação de pessoas, divulgação. Eu descobri quando vi um cachimbo enrolado em uma meia.

Irmão – Eu encontrei uma lata de refrigerante furada, que os usuários utilizam para fumar. Ela começou a trocar celular, roupas, pneu de carros, estepe, macaco, rádio, e para recuperar essas coisas eu ia nos traficantes para pagar e recuperar. Até que tive conversa com o tio e o pai e disse “não dá mais, tem de internar”. Aí o pai e a mãe abriram os olhos. Antes, só cobravam, tiravam o carro, tinha atitude de punição, mas não de tratamento.

ZH – Ela morava sozinha?

Mãe – Um tempo ela morou sozinha, depois comigo. O crack tem um perfil diferenciado, tu vendeu até o tênis que tu tem. O tênis, o relógio, o sapato. Tu começa a viver em um baixo mundo, mesmo. Nós morávamos em Porto Alegre, depois fui morar na praia, levei ela comigo, eu vinha trabalhar em Porto Alegre e ela trabalhava lá em uma empresa, mas o problema continuava presente. Ela viveu um período com um rapaz que também era dependente e ficou grávida. Aí foi assustador, porque estava grávida e fumando.

ZH – Mesmo durante a gravidez não conseguiu ficar longe do crack?

Mãe – Ela conseguiu um tempo, pelo menos, mas de vez em quando recaía. Mas até o filho dela nascer, a gente não tinha bem noção do que era essa doença. Ela tinha acompanhamento psiquiátrico e psicológico, mas não era um tratamento. Ela começou a se tratar realmente a partir do momento em que baixou numa clínica, quando o filho já estava com seis meses.

ZH – Por que não deu certo?

Mãe – Porque o tratamento do crack não é de 30 dias, 40 dias. Ele tem de ser contínuo. Eu aprendi isso. É uma doença, é uma coisa séria e tem de tratar de maneira diferente. Se a família não se envolver 24 horas por dia, não adianta. Por que a minha filha ficou mais de um ano sem usar? Porque quando comecei a entender o procedimento, ela largou emprego, amigos e ficou só comigo. Em casa, era só eu e ela. Se eu saía para trabalhar, ficava uma atendente terapêutica com ela. E não é barato esse tipo de serviço. Aí começou a melhorar, porque enquanto os usuários têm recaídas frequentes, eles não têm compreensão da coisa. A droga não deixa ver que o que está destruindo a tua vida é a própria droga. E não existe neste país tratamento para crack. É ilusão, é sonho o que dizem. Há vagas para desintoxicação, mas não tratamento.

ZH – Nem com plano de saúde?

Mãe – O plano paga 30 dias de internação por ano. É muito pouco. Ela ficou internada seis meses, mas estamos discutindo o pagamento com o plano de saúde na Justiça.

ZH – Ela havia deixado a clínica havia muito tempo?

Mãe – Em outubro passado. Ela estava em tratamento, mas em casa, comigo. Como ela estava indo bem, até comecei a afrouxar um pouco a vigilância. Acho até que muitas pessoas devem me julgar, dizer que eu não podia ter deixado ela, mas quando tu lida com isso, é uma coisa tão terrível, é uma exigência 24 horas para ti.

ZH – E como fica a rotina nessas condições?

Mãe – Eu não tenho mais vida. Eu sou aposentada do Estado, mas continuo trabalhando em uma universidade porque, se eu parar de trabalhar, não vou ter dinheiro para pagar o tratamento da minha filha. Tenho 63 anos e ainda trabalho muito. Trabalho 40 horas por semana na universidade, mas aí sempre tem alguém com ela. O meu neto passa o dia em uma escolinha muito boa, é muito bem cuidado, eu já fui lá, ela me acompanhou. Ela nunca se negou a isso. Mas tu ouve que tem gente que fica 10 anos limpa e recai. Os psiquiatras nos dizem que a recaída faz parte do tratamento. Mas o que aconteceu agora foi horrível porque ela levou a criança. E porque caiu em lugar em que ficou presa ali. Tu aprende a ver o perfil da recaída de cada pessoa. Todo dependente tem um perfil.

ZH – Qual o perfil da sua filha?

Mãe – Ela nunca levava a criança. Jamais. E, quando sumia, era oito horas, nove horas no máximo e a gente já sabia onde ela estava, porque ela ia sempre aos mesmos lugares em Porto Alegre. Era em um beco da Nilo Peçanha ou no Humaitá, o meu filho já sabia o roteiro e achava ela de carro em seguida. Mas, desta vez, ela sumiu. Ele virou a cidade, virou esses lugares de cabo a rabo, rodou esses lugares por sete, oito horas direto. Ninguém viu. Nós ficamos apavorados, porque fugiu do perfil.

ZH – Como foi a busca?

Mãe – O carro havia sumido, e a Polícia Civil e a Brigada Militar já estavam atrás deles. Mas amigos do meu filho sugeriram avisar a imprensa, porque os traficantes têm de ouvir que a polícia já está envolvida. Aí meu filho entrou em contato com o delegado Zucco (Rodrigo Zucco, do Denarc), que era colega dele no Colégio Militar, que disse que a nossa ação estava certa. Conversamos com o Sérgio Zambiasi, e quando foi 15h, o carro foi localizado.

ZH – O que houve depois?

Mãe – Dali a uma hora, recebi telefonema da minha filha. Passei para o meu filho, e ela pediu ajuda para ele. Ele perguntou: onde tu está? Ela disse “não sei, acho que estou em Viamão”.

Irmão – Quando eu liguei para o delegado Zucco para dizer que a minha irmã havia ligado, ele disse “já sei onde ela está, estamos nos dirigindo para lá”. Eu fui para lá também mas fiquei esperando com a minha mãe na Avenida Bento Gonçalves. Uma viatura nos pegou e, quando chegamos lá, já haviam encontrado.

ZH – Como ela foi parar lá?

Irmão – Ela foi na Zona Sul buscar crack, na segunda-feira. Aí encontrou uma guria que disse que não tinha lá. Mas que ia levá-la a um lugar onde tinha. Aí entrou no carro e levou ela ao Campo da Tuca. Minha irmã nunca tinha ido ao Campo da Tuca. Eu já tinha ido atrás dela na Vila Jardim, Conceição, no Humaitá, onde já havia localizado ela em recaídas anteriores. Mas não havia pista nenhuma. Eu recebi uma segunda ligação de uma mulher dizendo que a minha irmã estava no Campo da Tuca e não seria liberada. Aí eu liguei para o delegado Zucco, mas ele já estava lá.

ZH – Como ficou o estado dela com esse episódio?

Mãe – Ela está muito desesperada, sofrendo muito porque recaiu com o filho. Foi uma coisa na qual ela botou em risco a vida do filho dela. Ela chorava muito.

Irmão – Nas outras vezes, ela não entrava na casa dos traficantes. Ela fumava no carro. A psiquiatra disse que quando ela acordar e se der conta de que ficou três dias fumando crack com o filho, vai sofrer demais. Ela já está com uma vergonha enorme, diz que quer sumir.

ZH – Como foi no cativeiro?

Irmão – Ela chorava, pedia para ligar para a mãe dela, e eles davam uma pedra e diziam “toma aí, fuma pra te acalmar”. Para ela não criar problemas. Queriam ainda, como eles sabiam que o carro havia sido apreendido, que ela fosse com eles liberar o carro. Mas ela disse que não iria sair. Por isso deixaram ela telefonar para mim.

ZH – Como será o futuro?

Mãe – Eu vou ter cuidado com o meu neto, porque hoje eu sou mais mãe dele do que a minha filha, e ele tem essa predisposição para o vício devido a o que aconteceu. Ele traz a parte biológica da mãe. Eu tenho essa preocupação com o meu neto, que tem de ser muito bem cuidado. Quando ele começar a sair de casa, vou ter de ver quem são os amigos dele, aonde ele vai. Isso eu aprendi a duras penas. Enquanto eu viver, vou ter 20 olhos em cima dele.

Irmão – Vamos retomar o tratamento com força e dar todo amor à minha irmã.

Fonte: Zero Hora - 18/06/2011 

Comentário: Enquanto o STF ficou na filigrana jurídica em que a manifestação da droga é liberdade de expressão, o depoimento dessa mãe e filho revela o poder de destruição de uma família por  droga. É muito difícil  dissociar a Marcha da maconha ou da droga, da apologia de fumar maconha e sua visibilidade na mídia. A marcha em si já é uma propaganda da maconha. Vivemos na era da comunicação digital, somos bombardeados por informações a todo instante, na web, como e-mail, sites de notícias, redes sociais através do celular, blogs, fotos, etc.Esse tipo de manifestação cria curiosidade no adolescente., principalmente num país cheio de abismo social.

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