Faz 35 graus em uma tarde de julho em Washington D.C. e a fila da sorveteria só aumenta, a ponto de sair pela porta do estabelecimento. No caixa, um funcionário anota o pedido e recebe o pagamento. Em seguida, ele mesmo prepara as casquinhas e as entrega aos consumidores, para correr de volta ao caixa e atender o próximo cliente. Sozinho atrás do balcão, o atendente se desdobra. Mas a fila, composta por famílias sem máscara e ansiosas para aproveitar o primeiro verão pós-pandemia, não cede.
Comprar uma casquinha de
sorvete no horário de pico de uma tarde ensolarada no fim de semana, na capital
dos Estados Unidos, pode levar entre 20 minutos e meia hora. Há quem desista.
No país do capitalismo de manual, a sorveteria perde clientes porque não
consegue vender seu produto em tempo hábil.
Há vagas ali abertas há
semanas – para contratar atendentes de balcão e gerente de turno – com salários
entre US$12,50 e US$19 por hora. Mas não há candidatos para ocupá-las.
Essa história é um exemplo de
um curioso fenômeno experimentado pelos Estados Unidos. Em franca recuperação
econômica, depois de um tombo histórico só comparável ao da Grande Depressão de
1929, o país vive uma contradição: há muitas vagas de trabalho abertas, e
também muitos desempregados, mas eles não se completam.
De acordo com o último dado
do governo americano, a taxa de desemprego em junho de 2021 era de 5,9% – ou
algo em torno de 9,5 milhões de pessoas. Os empregadores, no entanto, não
conseguem contratar. A pesquisa da Federação Nacional de Negócios Independentes
mostrou que, no mês passado, 46% dos pequenos empresários do país disseram não
ter conseguido funcionários para suas vagas no período, mais do que o dobro da
média histórica medida nos últimos 48 anos.
"Na movimentada
temporada de verão, muitas empresas não conseguiram contratar trabalhadores
suficientes para administrar com eficiência seus negócios, o que restringiu as
vendas e a produção", afirmou o economista-chefe da federação, Bill
Dunkelberg.
Salários aumentando e bônus
de US$ 1 mil só por assinar contrato
"Em junho, vimos um
percentual recorde de proprietários aumentando a remuneração para ajudar a
atrair os funcionários necessários", completou Dunkelberg. A pesquisa
mostra que 39% dos empresários subiram suas ofertas salariais no período. É o terceiro
mês consecutivo de alta nas estimativas de pagamento aos trabalhadores
americanos. No ano, a remuneração por hora de trabalho já acumula reajuste de
3,6%.
E os donos de negócios não
têm apelado só a aumento de salário pra atrair mão de obra. Empresas do setor
de serviços têm oferecido bônus de até US$ 1mil ao funcionário recém‑contratado,
apenas pelo fato de ele ter aceitado se vincular à empresa.
O bartender e gerente de
cervejaria Eugene Barnett, de 42 anos, foi um dos profissionais que receberam
uma proposta de emprego que lhe garantiria US$ 1 mil apenas pela assinatura do
contrato. Barnett afirma que a proposta não o tentou porque a remuneração por
hora não era tão significativa.
Antes da pandemia, ele conta
que trabalhadores em bares na capital americana costumavam receber cerca de US$
9 por hora. Agora, para atrair a mão de obra, é preciso oferecer algo em torno
de US$ 15 por hora. Para ele, a resistência de parte dos chefes em aumentar os
salários explica por que há o descasamento entre vagas e desempregados.
"Os empregadores querem
oferecer ao trabalhador o mesmo salário de antes da pandemia, mas a realidade
mudou. As pessoas não estão dispostas a se arriscar a contrair covid-19 em
transporte público, e pagar por carro de aplicativo para ir ao trabalho é caro.
Além disso, as escolas estão fechadas, bancar uma babá pra cuidar do seu filho
não sai barato. Então, se fosse para receber o mesmo salário de antes, os
trabalhadores acabariam tendo que pagar para trabalhar", afirma Barnett à
BBC News Brasil.
'EFEITO PREGUIÇA' DO
SEGURO-DESEMPREGO?
Ele rechaça a tese de que os
benefícios de seguro-desemprego oferecidos pela administração do democrata Joe
Biden à população americana como forma de mitigar os danos econômicos da
pandemia tenham criado o "efeito preguiça" na força de trabalho
americana.
De março a setembro de 2021,
os Estados Unidos aumentaram e facilitaram o acesso à cobertura assistencial
para quem perdeu o emprego durante a pandemia de Covid-19. Trabalhadores
desempregados que se encaixam nos pré-requisitos do programa recebem 300
dólares por semana, ou US$ 1,2 mil por mês.
Alguns economistas afirmam
que isso pode ter colocado um piso alto demais na remuneração para que os
pequenos negócios de serviços, como restaurantes e bares, possam competir e
retirar os trabalhadores de casa.
"Com o crescimento que
estamos vendo na economia, era de se esperar que a geração de empregos mensais
no país estivesse na casa do milhão. O número de junho, no entanto, veio apenas
em 850 mil americanos recém-empregados. Parece óbvio que o programa de
seguro-desemprego está retirando incentivo de certos trabalhadores saírem de
casa", afirmou à BBC News Brasil Daniil Manaenkov, economista da
Universidade de Michigan.
Os dados disponíveis, no
entanto, não provam essa hipótese, ao menos por enquanto. Mais de 20 Estados
americanos já cortaram, nas últimas semanas, o programa de seguro-desemprego
federal de sua população, na expectativa de que isso aumentasse a busca por
ocupação na região.
Os quatro primeiros a tomar
essa iniciativa (Alasca, Iowa, Mississipi e Missouri) o fizeram há quase um
mês. Ali, no entanto, as buscas por vagas desde então ficaram 4% abaixo da
média nacional, de acordo com o site Indeed, um dos maiores agregadores de
oportunidades de emprego no país.
CHOQUE ESTRUTURAL NA ECONOMIA
Ainda assim, Manaenkov
acredita que o fim do auxílio federal e o retorno das aulas presenciais,
programado para setembro, devem ajustar parcialmente a demanda e a oferta da
força de trabalho. Manaenkov afirma, no entanto, que a normalização entre vagas
e trabalhadores pode se alongar, já que a pandemia provocou o que ele chama de
"choque estrutural na economia".
"De repente, setores
inteiros - como hotelaria ou limpeza de prédios comerciais - foram
drasticamente reduzidos pela Covid-19. Esses trabalhadores dispensados tiveram
que ser reabsorvidos em outras áreas - delivery de comida, fabricação de
máscaras, por exemplo. Voltar à normalidade vai ser um novo choque
estrutural", diz Manaenkov.
O problema da economia
americana pode soar ao leitor como bom demais para ser verdade, especialmente
quando comparado a cenários como o do Brasil – onde a economia ensaia retomada,
a despeito da taxa recorde de 14,7% de desempregados registrada pelo IBGE no
primeiro trimestre de 2021. E, de acordo com os especialistas, a saída dos
americanos da recessão pandêmica - com salários mais altos e vagas de sobra - é
uma realidade "única" e "exclusiva" daquele país.
"A maior parte dos
demais países do mundo, à exceção talvez da Alemanha, terão problemas fiscais e
de desemprego muito mais graves para lidar", afirma Manaenkov. Fonte: G1 Mundo - Por BBC- 18/07/2021
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