Jânio
Quadros ainda não tinha sido eleito presidente do Brasil quando, em visita a
Moscou, em 1959, fez uma promessa ao tradutor que o acompanhava na viagem pela
União Soviética: "Quando eu chegar ao poder, e chegarei com 100% de
certeza, você será o primeiro a receber o visto". O presidente eleito no
ano seguinte nunca saberia, mas Alexandr Ivanovich Alexeyev, que atuara como
seu tradutor, era um agente da KGB, a agência de inteligência soviética. Parte
dessa história, que culminaria na retomada das relações do Brasil com a União
Soviética em 1961, é contada no livro 1964 - O elo perdido (Vide Editorial,
2017), publicado no início deste ano. A obra é fruto da primeira investigação
brasileira nos arquivos do serviço de inteligência da antiga Tchecoslováquia, o
StB (sigla para "Segurança Estatal"), feita pelo paranaense Mauro
Kraenski em parceria com o tcheco Vladimír Petrilák. Submetida à KGB, a StB
atuou na América Latina durante a Guerra Fria e seus arquivos servem como
aperitivo das ações soviéticas no continente, já que os documentos de Moscou
seguem restritos.
"Não
há praticamente nada de pesquisa sobre a União Soviética nesse período",
comenta o professor Carlos Fico, do departamento de história da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ele diz que não há muito interesse sobre o
assunto, e cogita que seja por conta da pouca interferência soviética no país.
Kraenski chegou aos arquivos tchecos por acaso. Trabalhava como guia no
Memorial e Museu Auschwitz-Bikernau, o antigo campo de concentração nazista na
Polônia, e se interessou pela história do país. Ao topar com a circulação de
informações erradas sobre os soviéticos no contexto polonês, decidiu buscar
informações em relação ao Brasil. Procurou na Polônia, mas foi encontrar
material mesmo na República Tcheca.
Para
conseguir adequar o polonês que ele fala ao tcheco dos documentos, o
pesquisador se associou ao tradutor Vladimír Petrilák. Os dois montaram um site
para divulgar o resultado das pesquisas e receber contribuições, já que não encontraram
nenhuma instituição governamental ou acadêmica disposta a patrocinar a
investigação. E qual foi a grande descoberta dos arquivos pela perspectiva dos
pesquisadores? “Talvez seja o fato de saber pela primeira vez sobre a atuação
de espiões de serviços de inteligência do bloco soviético no Brasil. Ou
descobrir que houve brasileiros que, segundo os documentos, colaboraram — de
forma consciente ou não, depende do caso — com esse serviço de espionagem
estrangeiro”, responde Kraenski, que ressalva algumas vezes ao longo do livro:
todas as informações dos arquivos secretos devem ser consideradas com cuidado.
Muitas delas não têm fontes alternativas para confirmação, mas, mesmo assim,
ele argumenta, são fonte relevante sobre o período.
SERVIÇO
DE INTELIGÊNCIA
Os
autores do livro se concentraram na pesquisa dos documentos do I Departamento
da StB, responsável pelo serviço de inteligência no exterior, onde descobriram
que uma rede de 30 agentes e cerca de 100 "figurantes" — potenciais
agentes que colaboraram com o serviço de inteligência sem saber — atuou no
Brasil de 1952 a 1971. “O serviço de inteligência tchecoslovaco determinava
objetos ou alvos de interesse, com o objetivo de entrar, infiltrar ou penetrar
operacionalmente através de sua rede de agentes para aquisição de informações
ou materiais relacionados com determinadas tarefas", diz Kraenski. Entre
os principais alvos estavam o Itamaraty, o Governo federal e o parlamento, além
de instituições como a Petrobras, o Exército e o BNDES. Os soviéticos buscavam
brasileiros de perfil nacionalista e antiamericano, mas que não tivessem laços
tão evidentes com o Partido Comunista Brasileiro, e usavam desde o argumento
ideológico e o oferecimento de presentes até o pagamento de honorários e
estratégias de chantagem baseadas em informações constrangedoras.
Entre
as operações mais ousadas do serviço de inteligência tchecoslovaco, os autores
incluem a intermediação de armamentos para o Brasil, a falsificação de
documentos para implicar os Estados Unidos no golpe de 1964 e o financiamento
de ao menos um jornal, como parte de um projeto — maior e não finalizado — que
tinha como meta criar uma emissora de tevê e uma rádio de alcance continental.
O envio de 20.000 metralhadoras de produção tcheca para o Brasil acabaria acontecendo
sem a interferência direta da StB e chegou a virar assunto no parlamento
brasileiro à época. Os documentos também expõem como os tchecos, sempre
interessados em disputar com os Estados Unidos a influência na região, atuaram
no Brasil para melhorar a imagem do regime cubano pós-revolução e até criaram
uma operação para reagir, em 1961, a um possível golpe de Estado.
"O
camarada ministro confirmou a operação ativa I-V de criptônimo LUTA, cujo
objetivo é causar demonstrações e tumultos antiamericanos e — em caso de seus
surgimentos — causar uma guerra civil no Brasil. Um dos objetivos desta
operação ativa é fazer com que representantes nacionalistas tomem o poder no
Brasil", diz documento de 23 de outubro de 1961 exposto no livro. A
operação, que envolveu contatos com o então governador do Rio Grande do Sul
Leonel Brizola e as Ligas Camponesas lideradas por Francisco Julião, durou
apenas seis meses, de novembro de 1961 a abril de 1962, e provavelmente foi
encerrada quando os responsáveis perceberam a dificuldade de executá-la.
O
GOLPE
A
pesquisa de Kraenski e Petrilák mostra ainda que os tchecoslovacos foram
surpreendidos quando os militares tomaram o poder na virada de março para abril
de 1964. A falha do serviço de inteligência em antecipar a derrubada do
presidente João Goulart foi atribuída posteriormente à falta de contatos entre
a direita brasileira. Nos relatórios internos, os agentes destacaram a
"hesitação típica de Goulart e a sua incapacidade de levar as coisas até o
fim" como motivo de uma queda sem reação. "Não se podia sequer falar
em derrota, pois a derrota pressupõe uma luta, e no Brasil houve somente uma
tomada pacífica de poder pela direita", diz um trecho do mesmo documento,
um relato sobre o golpe de Estado destinado apenas à elite do partido comunista
tchecoslovaco.
As
atividades soviéticas no Brasil sofreram um grande abalo após a tomada de poder
pelos militares. Os agentes tchecoslovacos, que contavam entre seus contatos
com jornalistas, funcionários públicos e até um deputado federal, tiveram de se
retrair. Vários de seus "figurantes" se refugiaram em embaixadas
estrangeiras e no exterior ou perderam os cargos que lhes garantiam relevância.
O serviço seguiu por pelo menos mais sete anos, contudo, e seus registros ajudam
a entender o clima de desconfiança e medo que levou o país a passar 20 anos sob
o jugo de um regime militar. E esse é apenas o início da história do lado
soviético. Kraenski diz que ainda há material para ser pesquisado no arquivos
e, assim como ocorre no Brasil, desconfia-se que os documentos que os
tchecoslovacos registram como destruídos possam estar guardados em algum lugar
OS
BRASILEIROS "SÃO PESSOAS PREGUIÇOSAS E BEM LEVIANAS"
Os
arquivos tchecoslovacos se prestam também à crítica de costumes. Desde a chegada
ao Brasil, em 1952, os agentes registraram suas impressões em relatórios que
seriam repassados aos colegas que os substituiriam no futuro. Atuar no Brasil
não era exatamente uma prioridade, mas era considerado muito mais seguro do que
atuar nos Estados Unidos ou no Reino Unido. Em meio a reclamações sobre o calor
que fazia no Rio de Janeiro e a falta d'água por uma semana no apartamento de
Copacabana onde o primeiro chefe da rezidentura (base do serviço de
inteligência) tchecoslovaca no Brasil se instalou, encontram-se análises
sociológicas. "Todo o povo é educado em um espírito de desprezo para com o
trabalho, o que pode se observar, por exemplo, quando as faxineiras se recusam
a limpar janelas e assoalhos, o que obriga a contratação de mais faxineiras especialmente
para isso", registra o agente Jirí Kadlec, de codinome Honza.
Segundo
o primeiro agente da StB no Brasil, "homens e mulheres têm unhas tratadas,
todos querem a qualquer preço causar a impressão de que não precisam trabalhar
fisicamente". Em outro trecho, ele relata violência e assassinatos, um
deles cometido a 20 passos da embaixada tchecoslovaca: "Em plena luz do
dia, um homem cortou a garganta da esposa porque a mesma não queria partir com
ele para outra região do país em busca de uma vida melhor". Em outro
relatório, registra-se que "os brasileiros reconhecem como cozinha típica
somente a cozinha baiana" e que ela "pode levar à enfermidade".
A cervejas são boas, independente das marcas, mas os cigarros são ruins.
O
trecho mais impiedoso sobre os brasileiros reproduzido pelos pesquisadores no
livro 1964 - O elo perdido coube ao agente Václav Bubenícek (codinome Bakalár):
"Um brasileiro, ao contatar com um
estrangeiro, possui uma tendência em fazer uma grande quantidade de promessas,
já supondo que não cumprirá nenhuma delas". Referindo-se à classe média
urbana, ele diz que "são pessoas preguiçosas e bem levianas, com as quais
não se pode contar". "Os brasileiros de classe média frequentemente
surpreendem um europeu com uma longa lista de faculdades e cursos que
terminaram; mas, na verdade, o conhecimento adquirido por eles é muito
superficial, o que significa que no Brasil, por regra, encontramos pessoas
ignorantes, que, mesmo com numerosos títulos científicos, não chegam aos pés da
nossa gente com formação primária", finaliza. Fonte: El
País - São Paulo 6 JUN 2018
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