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quarta-feira, 29 de novembro de 2017

História: A ditadura faz 50 anos

Para os jovens, 50 anos é um considerável período de tempo. Aos velhos, que já viveram mais de meio século, parece um ponto no passado. Para a disciplina de história, uma data redonda, suscitando reflexões, debates e a possibilidade de encontrar hipóteses e ângulos de análise inovadores e construtivos.

Considerando os limites deste artigo, escolhi um tema a respeito do qual tem havido muitas controvérsias. Refiro-me ao caráter da ditadura.
Desde a vitória do golpe de 1964, as forças políticas de esquerda, derrotadas, não hesitaram em caracterizar a ditadura como militar

Desde a vitória do golpe de 1964, as forças políticas de esquerda, derrotadas, não hesitaram em caracterizar a ditadura como militar. Tratava-se de isolar os mais importantes protagonistas, os chefes militares, ridicularizados como truculentos, pouco inteligentes. Não passavam de ‘gorilas’, como se dizia. Era um recurso – legítimo – da luta política, quando se pretende menos compreender o que se passa do que isolar e derrotar os adversários ou os inimigos.

DITADURA MILITAR
A expressão consolidou-se entre as várias correntes que se opunham ao regime. Consagrou-se como verdade indiscutível à medida que as oposições cresciam, reforçando-se inclusive com adeptos da ditadura que dela se afastavam e não queriam pensar ou falar de suas cumplicidades com a mesma. Houve um momento, em meados dos anos 1980, em que a imensa maioria da sociedade brasileira professava um horror sagrado à ditadura.

MEMÓRIA E HISTÓRIA
Uma operação de memória. Mas memória não é história. Esta se constrói com evidências, obtidas em fontes disponíveis, compartilhadas pelos pesquisadores.

Essas evidências mostram que diferentes – e amplos – segmentos civis participaram ativamente da preparação do golpe, de sua sustentação e do apoio aos governos ditatoriais. Não foi algo limitado às elites empresariais e eclesiásticas, como René Dreifuss mostrou pioneiramente nos anos 1980.

O golpe de 1964 não foi um movimento exclusivamente militar. Diversos setores civis participaram de sua preparação e de sua sustentação.  

O processo teve caráter social, popular: milhões de pessoas participaram das Marchas da Família com Deus pela Liberdade, que, iniciadas em 19 de março, prolongaram-se festivamente até setembro de 1964. Em todas as capitais dos estados e em muitas cidades médias e pequenas, pessoas marcharam saudando e se congratulando com a vitória do golpe, segundo trabalho de Aline Presot até hoje não publicado.

A participação civil também envolveu instituições políticas, econômicas e culturais. Um estudo sobre a Aliança Renovadora Nacional, a Arena, partido da ditadura, mostrou suas extensas ramificações em todo o território nacional: em 1978, quando já era imenso o desgaste do regime, esse partido teve ainda cerca de 40% dos votos. Outros estudos revelaram o que pouca gente sabe: a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), tidas com justiça como atores importantes das lutas democráticas, saudaram o golpe. Só mais tarde, migraram para o campo das oposições, denunciando os abusos de um regime que tinha a tortura como política de Estado.

Outras pesquisas, envolvendo o futebol, a música sertaneja, a multiplicação dos sindicatos e outros temas, vêm acumulando evidências quanto à participação civil, direta ou indireta, na construção da ditadura e das complexas relações que se estabeleceram entre diferentes setores da sociedade e os governos ditatoriais.

Nunca houve unanimidade em favor da ditadura. Sempre houve oposições, moderadas e radicais, que adotavam diferentes formas de luta

Cabe enfatizar que nunca houve unanimidade em favor da ditadura. Sempre houve oposições, moderadas e radicais, que adotavam diferentes formas de luta. Entretanto, só a partir de 1974 as oposições moderadas, cada vez mais reforçadas por ex-apoiadores do regime, conseguiram maior audiência social.

Por outro lado, no campo contraditório e heterogêneo dos que apoiavam a ditadura, o processo não foi simples nem linear. Houve idas e vindas, deserções, mudanças de lado, sem contar as expectativas frustradas de lideranças civis de direita como Carlos Lacerda, Magalhães Pinto, Adhemar de Barros, e mesmo de políticos centristas, como Juscelino Kubitschek e Ulysses Guimarães: apoiaram o golpe, esperando uma intervenção brutal, mas rápida, cujos resultados os beneficiariam. Não foi o caso. Muitos acabaram marginalizados, condenados a papéis secundários, ou foram cassados, expulsos da vida política, como Lacerda, Ademar e JK.

Também não é possível esquecer que muita gente ficou em cima do muro, ou subiu nele quando julgou conveniente. Outros tantos, por alegado medo, cruzavam os braços, ou nem cogitavam a existência do regime político. Queriam trabalhar, constituir família, ter sucesso. Alguns lamentavam os ‘excessos’ dos agentes da ordem pública, mas aquilo lhes parecia uma contingência quase inevitável. Mais importante é que o país crescia, progredia – quem não gostasse que se retirasse.

Toda essa história precisa ser conhecida, estudada. Não para crucificar os apoiadores da ditadura, algo inviável e inútil, mas para compreender melhor as bases sociais e históricas de um regime ditatorial que se instaurou quase sem resistência e se retirou em boa ordem, sem levar nenhuma pedrada. O mesmo já acontecera com o Estado Novo, entre 1937 e 1945, coberto pelo manto da memória conciliadora.

Fazer dos ‘milicos’ bodes expiatórios pode ser uma operação simples e fácil: um outro manto. Economiza pesquisa e reflexão, mas não prepara a sociedade brasileira para lidar, no futuro, com novos surtos de autoritarismo. Fonte: Revista Ciência Hoje / Edição 313- Daniel Aarão Reis - Departamento de História
Universidade Federal Fluminense

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