Ah, a experiência! Os colunistas são como certos cachorros
de caça. A presa ainda não apareceu no horizonte. Mas os nossos caninos já
estão espumando de excitação.
Exemplo: dias atrás, li uma excelente entrevista de Jonathan
Franzen à "Slate". Gosto de Franzen. Conheci-o pela primeira vez em
2002, talvez 2003, em livro de ensaios que recomendo ("Como Ficar
Sozinho", Companhia das Letras). Depois, provei os romances. Também recomendo,
embora "As Correções" (Companhia das Letras) me pareça bem melhor que
os seguintes.
Mas regresso à entrevista. E aos meus caninos. A certa
altura, o entrevistador pergunta a Franzen se ele nunca pensou em escrever um
romance sobre os conflitos raciais que correm pelos Estados Unidos. A pergunta
é absurda: um escritor não tem que escrever sobre os temas que interessam ao
entrevistador –e isso revela a decadência cultural do jornalismo contemporâneo.
Franzen escutou a pergunta, meditou e finalmente respondeu,
embaraçado: "Não tenho muitos amigos negros", um eufemismo para dizer
que não tem nenhum. E depois, com honestidade, concluiu: só devemos escrever
sobre realidades que conhecemos bem.
Terminei essa parte da entrevista com duas perguntas a
balançar no trapézio.
A primeira foi questionar se também eu tenho amigos negros.
Não tenho. Existem conhecidos, colegas, amigos de amigos. Mas não tenho no
portfólio um exemplar para mostrar. Razões?
Nenhuma em especial. Nunca aconteceu. O destino, nessas
matérias, tem uma palavra importante. E, além disso, eu ainda respeito o
significado profundo da palavra "amigo". São três ou quatro e ponto
final. Por acaso, todos brancos.
Mas a segunda pergunta é mais relevante que a primeira e foi
ela que despertou o meu faro: depois da confissão de Franzen, esperei pelas
críticas das brigadas. Que logo surgiram, para confirmarem o meu instinto.
No inglês "The Guardian", a escritora Lindy West
resumiu o estado da arte: Franzen faz parte da esmagadora maioria de americanos
brancos (75%, segundo um estudo do Public Religion Research Institute) que não
tem amigos de outras raças. Franzen seria, na linguagem erudita de West, um
caso de "auto-segregação": um escritor que se esconde na sua bolha de
privilégio e que nunca mostrou interesse em ter amigos negros.
Ponto prévio: se a cifra está correta (75% de brancos sem
amigos de outras raças), é óbvio que existem dois planetas distintos nos
Estados Unidos quando os negros representam 12% da população (estimativa
conservadora).
A pobreza tem aqui a palavra central, admito: nas nossas
vidas cotidianas, tendemos a cultivar "relações de classe". Se os
brancos são mais afluentes que os negros, é normal que os brancos tenham amigos
brancos.
Por outro lado, já não será tão normal viver em grandes
cidades –como Nova York, Chicago ou Los Angeles– sem amigos negros que habitam
a mesma classe média. Mas será que isso constitui um crime? Ou, pelo menos, uma
falha de caráter?
A escritora acredita que sim. E, na sua cabeça pequena, não
lhe ocorre a possibilidade singela de Franzen não ter amigos negros porque
nunca os encontrou.
Para Lindy West, a raiz do desencontro está na pigmentação
da pele; mas como excluir, com dogmatismo infantil, a importância das
afinidades culturais, dos interesses comuns ou até dos acasos biográficos ou
geográficos?
Finalmente, e em verdadeira paródia ao conceito de
"amizade", Lindy West questiona por que motivo Franzen não faz um
esforço para procurar amigos negros. "Amizade", para ela, é uma
espécie de jardim zoológico privado onde temos o amigo negro na jaula 1; o
asiático na jaula 2; o hispânico na jaula 3; o samoano na jaula 4; e, já agora,
o índio na jaula 5. Parafraseando os existencialistas, a aparência precede a
essência.
É um caminho. Claro que esse conceito de amizade também pode
ser problemático: se a ONU tem 193 Estados membros, uma amizade verdadeiramente
inclusiva deve transcender as fronteiras do país e abraçar o mundo inteiro. Ou
somos cosmopolitas, ou não somos nada.
Prometo que vou fazer um esforço: amanhã começo na letra A –
com um amigo afegão– e só descanso quando chegar ao Zimbábue. Fonte: Folha de São Paulo - 09/08/2016 - João Pereira Coutinho, escritor
português
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