Vou contar uma história: a princesa do Reino Unido foi
sequestrada. O criminoso, em vídeo divulgado pelo Youtube, fez as suas
exigências. Não queria dinheiro. Não queria a libertação de prisioneiros. Não
queria o fim das hostilidades em algum lugar do Oriente Médio.
Ele apenas exigiu que o premiê britânico fosse transportado
até o centro de Londres para ter sexo com um porco em frente das câmeras. Caso
contrário, bye bye princesa.
O premiê ficou atônito com a exigência. Intolerável.
Impensável. A população apoiou o premiê e ficou tão atônita quanto ele. Sexo
com miss Piggy? Melhor chamar a polícia.
O premiê chamou a polícia. A polícia tentou capturar o
bandido em tempo útil. Sem sucesso. O bandido, como medida de retaliação,
enviou um dedo cortado da princesa.
Horror no reino! O povo, que apoiava o premiê, começou a
criticá-lo. Novas pesquisas mostravam que a maioria da população já apoiava o
"rendez-vous" suíno. O que é mais importante: a vida da princesa ou a
dignidade de um premiê?
A rainha telefonou para Downing Street. Não exigiu nada
–explicitamente. Apenas pediu que tudo fosse feito –tudo?– para salvar a
princesa.
Os assessores do premiê concordaram. "Tudo"
significa tudo. Será assim tão degradante fazer sexo com um porco para salvar a
linhagem real?
Essa pergunta não nasceu da minha cabeça doente. Ela
inaugura "Black Mirror", uma das séries mais perturbadoras dos
últimos anos. Não é uma história de folhetim, dividida em episódios, como as
séries habituais. Cada episódio é um pequeno filme sobre o futuro humano e
tecnológico.
Atenção às palavras: "humano" e
"tecnológico". Que o mesmo é dizer: que tipo de vida teremos nós com
as alterações promovidas pela tecnologia?
O caso do porco –uma óbvia evocação de um rumor sobre o
comportamento de David Cameron quando era estudante em Oxford– é apenas um
exemplo: hoje, a política "moderna" já se faz ao ritmo das exigências
da turba. A tirania das enquetes; as discussões no "bas-fond" das redes
sociais; a promoção da "vox populi" pela mídia tradicional –os
bárbaros mandam.
O líder, em rigor, já não lidera; ele é liderado pelas
massas. E, se assim é, haverá ainda lugar para conceitos arcaicos como
"dignidade", "independência intelectual" ou "coragem"
para ser impopular?
"Black Mirror" é feito dessas perguntas. E de
outras, que já podemos intuir em 2017. Devemos ter direito ao esquecimento e à
privacidade das nossas memórias? Ou será preferível ter acesso permanente ao
passado –acesso visual, detalhado, partilhável, como se a existência fosse um
filme facilmente rebobinável?
E a morte? Sim, nenhuma civilização temeu tanto a morte como
a nossa. Mas será desejável que os nossos mortos possam ser
"ressuscitados" pela tecnologia em simulacros de voz e corpo que nos
poupam as dores do luto?
E se um dia a forma como somos avaliados no Facebook
transbordar para a vida cotidiana? Até onde estaremos dispostos a ir para
receber mais "likes" e subir na hierarquia social?
Todas essas demandas convidam a uma reflexão inversa. Um
político que é escravo da opinião popular pode facilmente transformar-se em
simples marionete dos piores instintos da maioria.
O esquecimento e a privacidade são a última barreira que nos
protege da destruição e da autodestruição.
O luto não é apenas feito de dor e sofrimento; é uma pausa
necessária para reencontrar sentido e reconciliação depois do naufrágio.
E a obrigação de sermos permanentemente alegres e felizes
para subir na hierarquia dos "likes" é uma forma de tortura. Não por
excluir a infelicidade (isso é impossível); mas apenas a expressão pública
dessa infelicidade. Como acontece em regimes totalitários.
A maior proeza de "Black Mirror" está na forma
como mostra duas realidades contrastantes, que os fanáticos da tecnologia são
incapazes de vislumbrar: de um lado, a fluidez amoral da criação tecnológica;
do outro, a permanência da natureza humana.
Podemos imaginar um mundo de mil possibilidades técnicas;
mas o "software" de que somos feitos –sentimentos primitivos como o
medo, a inveja, o ciúme, a vergonha– não se altera com uma simples mudança de
cenário.
Macacos com melhores smartphones nunca deixarão de ser
macacos. Apenas se tornam mais patéticos ou mais perigosos.Fonte: Folha de São Paulo - 03/01/2017 -João Pereira Coutinho-escritor português
Nenhum comentário:
Postar um comentário