terça-feira, 10 de abril de 2018

Holanda, de paraíso da maconha legal a narcoestado

Na tarde de 26 de janeiro passado, o clube juvenil Wittenburg, situado ao lado de um parque infantil no centro de Amsterdã, realizava um curso de culinária e aulas de kickboxing. Era um dia como outro qualquer numa associação de bairro pensada para fortalecer a união entre os moradores. Ao redor das 19h, contudo, o clima de calma deu lugar ao horror. Dois homens armados e encapuzados entraram no local chamando um tal Gianni aos gritos. Os menores, seus monitores e várias mães se jogaram no chão. Com grande nervosismo, os agressores dispararam indiscriminadamente e fugiram num carro roubado. Deixaram um rastro de sangue e medo: Mohammed Bouchikhi, de 17 anos, estava morto; Gianni, de 19, buscado pelos pistoleiros (que não o conheciam), ficou gravemente ferido; outra jovem, de 20 anos, recebeu um disparo na perna.

O centro atacado fica na antiga zona portuária da capital holandesa, chamada Oostelijke Eilanden (Ilhas Orientais). Os moradores disseram “basta” após o tiroteio. Foi o segundo assassinato registrado ali nos últimos três meses, numa área de arquitetura de vanguarda transformada em cenário de ataques inusitados.

A polícia afirma que a maior parte dos enfrentamentos entre facções de diversas origens étnicas é culpa do tráfico de drogas. “Foi um tema tabu até agora, embora o crime organizado faça ajustes de contas com tiros em plena luz do dia. Deixam cabeças cortadas em frente ao negócio do rival, e uma economia paralela lava o dinheiro [do tráfico]. Além disso, nos últimos 30 anos os pequenos traficantes holandeses se tornaram grandes investidores em imóveis. Em suma, essas são as características de um narcoestado”, afirma Jan Struijs, de 56 anos, presidente do Sindicato da Polícia Holandesa.

CADA VEZ MAIS JOVENS
O Sindicato também se expressa com essa contundência no relatório que apresentou ao Governo, após entrevistar cerca de 400 inspetores. Um trabalho no qual Struijs, que já trabalhou como policial nas ruas, delegado e diretor da Academia de Polícia, pede um reforço de 2.000 agentes para combater o crime organizado, cujos pistoleiros são cada vez mais jovens. “A Holanda é um país seguro, mas há uma década o assassinato por encomenda custava uns 50.000 euros (200.000 reais) e o pistoleiro era um profissional adulto. Hoje, custa 5.000 euros (20.000 reais) e o autor é um menor. Essas pessoas costumam vir de famílias desintegradas, e seus ídolos são sujeitos ao volante de um carrão que fingem se ocupar deles, dizendo que terão dinheiro e status. Num dos últimos casos, o garoto que matou duas pessoas tinha 16 anos. O aliciador sabe que nessa idade os jovens passarão uns cinco anos presos e fazem promessas para quando saírem”, afirma Struijs.

A atual espiral de violência no país começou em 2012 no porto de Antuérpia. Um carregamento de 200 quilos de cocaína foi roubado e acabou sendo disputado por dois grupos rivais, um das Antilhas e outro do Marrocos. Ambos faziam parte de uma organização conhecida como Mocro Maffia. “Foram se matando entre eles desde então. Há mais de 20 mortos. Hoje, podemos dizer que há dois líderes, ambos na prisão. São Naoufal F. e Benaouf A., além de muitos grupos menores”, diz Mick van Wely, especialista em crime organizado do jornal De Telegraaf.

Seu colega Paul Vugts, do periódico Het Parool, escondido e sob proteção policial, afirma que houve uma troca da guarda no mundo do crime local. “Há 30 anos, os mafiosos eram holandeses autóctones. Alguns, como Willem Holleeder, continuam entrando e saindo da prisão, mas agora existem múltiplas figuras.”

Os especialistas destacam o porto de Roterdã como o principal lugar por onde entram drogas de todo tipo. Pela posição geográfica e a infraestrutura, a Holanda é o ponto ideal para distribuí-las ao resto da Europa. A guerra subterrânea pelo controle desse negócio acaba com derramamentos de sangue.

UMA POLÍCIA MAIS ÉTNICA PARA COMBATER O CRIME
A procedência dos criminosos é diversa: holandeses, do Suriname e das Antilhas, de origem turca e marroquina, e cada vez mais albaneses, segundo a polícia. Os estacionamentos subterrâneos de Amsterdã são o lugar favorito dos traficantes para seus ajustes de contas, mas um suspeito albanês foi alvo da ação em plena rua: dois motoristas de uma facção rival o atropelaram e roubaram sua cocaína a toda velocidade. Parte da droga acabou no chão, sob os olhares de todos.

“Apesar da variedade, os criminosos mais visíveis parecem ser de origem marroquina”, diz Ahmed Marcouch. Aos 48 anos e nascido no Marrocos, Marcouch foi policial na capital holandesa e ex-deputado social-democrata. Agora é prefeito de Arnhem, no leste do país. “Há na Holanda um grupo de jovens que se matam entre eles. Ganham muito dinheiro com assassinatos por encomenda, que depois gastam em carros, férias e casas, e se sentem intocáveis. Os donos da rua. Para combatê-los, precisamos de uma polícia com maior diversidade étnica. Que entenda sua língua e ganhe sua confiança porque compreende sua cultura. Mas o corpo policial é de maioria autóctone branca. O crime organizado é internacional, e a policia deve se organizar também”, afirma.

O assistente social Safoan Mokhtari diz que esses garotos que entram tão cedo no crime não são bobos. Conseguiriam um bom trabalho se tivessem o mesmo interesse em estudar. “Alguns vão ao colégio, mas depois se metem no lugar errado. Começam vendendo haxixe, e se passam para a cocaína é outro grupo. Outro ambiente.” Daí a importância da prevenção. “Os agentes fazem o que podem, e a diversidade é essencial para que haja um contato real e para melhorar a percepção que se tem deles”, diz. “Do contrário, esses jovens evitarão se aproximar.” Fonte: El País - 1 ABR 2018     

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